sexta-feira, 20 de março de 2015

Andanças pela última morada

Mais uma vez, com muita habilidade, a historiadora e pesquisadora da Fundação Pró-Memória Priscila Gorzoni nos encanta com seus textos sobre aspectos de São Caetano do Sul, seja da vida dos moradores seja da cidade, que nos passam despercebidos diante dos olhos apressados do cotidiano.

Desejamos a todos boa leitura!

Andanças pela última morada

Percorrer os cemitérios das cidades é, sem dúvida, uma das formas de conhecer a alma, pensamento, visão de vida e histórias de uma comunidade. É nos mortos que os vivos refletem o que pensam e como desejam ser vistos. É nos cemitérios das cidades que encontramos alguns personagens marcantes, enigmáticos e históricos. Representantes de um tempo que ficou para trás, mas que ainda deixa ecos no mundo dos vivos.

O nascimento e a morte são as duas mudanças fundamentais que ocorrem com o ser humano. Depois da morte, o corpo é objeto de vários rituais, que acompanham as representações que cada indivíduo tem em vida. Duas atitudes opostas se destacam no rituais fúnebres: o aniquilamento total do corpo ou sua conservação a qualquer preço.

Em todas as culturas, a comunicação entre os dois mundos é mantida por meio dos recursos materiais, como tumbas, efígies, estátuas, retratos, cemitérios, caixões, entre outros. Essas formas de se comunicar também variam de uma comunidade para outra. Por isso, uma das maneiras de entender como os nossos ancestrais concebiam o mundo é descobrir como tratavam seus mortos.

Foi para compreender um pouco mais a mentalidade dos antigos moradores de São Caetano que, em uma manhã comum de inverno, parti para o Cemitério São Caetano, conhecido como Cemitério Santa Paula, o primeiro da cidade.

Quem chega a esse local vê ao longe os túmulos suntuosos, grandiosos e belos. Lá estão enterrados personagens famosos da cidade, como Ângelo Raphael Pellegrino, Hermógenes Walter Braido, Oswaldo Samuel Massei, Anacleto Campanella, João Dal´Mas e o curandeiro Vicente. 

Antes do Cemitério São Caetano, os moradores passavam momentos de angústias para enterrar seus mortos. Nos primeiros tempos, os corpos eram jogados em valas pelas estradas. Depois, passaram a ser enterrados em São Paulo e, posteriormente, em São Bernardo do Campo.

Com esse problema em vista, foi sugerida a construção de um cemitério na cidade e assinada uma lei, em 1911, que abria crédito extraordinário para essa finalidade. A vontade da população foi ouvida e o cemitério se tornou realidade.

O terreno usado para a construção foi doado pela família Garcia, que aceitou fazer a doação já que possuía muitas terras no bairro. Era uma área tipicamente rural, situada ao lado da estrada que seguia de São Caetano para a Estação de São Bernardo (hoje Santo André).

Foi com a construção do Cemitério São Caetano que a paisagem da cidade começou a mudar, de rural ganhou ares mais urbanos. Em torno do cemitério, surgiram várias casas, bares e armazéns.

O ritual da morte dos primeiros moradores de São Caetano era bem diferente do atual. O falecimento de uma pessoa era, em poucas horas, do conhecimento de quase toda a população. E a preparação do defunto era feita pelos próprios familiares.

No local do velório, realizado na casa da família do morto, eram colocadas faixas pretas nas janelas e portas para noticiar o falecimento. O transporte do defunto para o cemitério era organizado: caminhava-se em filas de par, meninos e meninas carregavam ramalhetes de flores que eram oferecidos aos demais. Os caixões eram todos do mesmo formato, retangular, sem detalhes e modestamente forrados. Os dos homens eram de cor preta, com aplicações de galões dourados.

Durante o luto, a sociedade não via com bons olhos a presença dos enlutados em bailes, festas, cinemas ou qualquer divertimento, mesmo em celebrações familiares, por considerar aquela atitude um desrespeito ao falecido.

Referências bibliográficas:

Do velório ao sepultamento, de Henry Veronese (Revista Raízes 13).
História e arte no cemitério da Consolação, de José de Souza Martins.
Nostalgia, de Manoel Cláudio Novaes, Editora Meca.

sexta-feira, 6 de março de 2015

Bravas mulheres

A fim de homenagear as mulheres de São Caetano do Sul, que muito contribuem e contribuíram para a formação do município, a Fundação Pró-Memória publica este texto da historiadora e pesquisadora Priscila Gorzoni, ao relembrar as primeiras mulheres que ocuparam esse território.

Boa leitura!

Bravas mulheres

“Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem esses olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha essas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha esse coração
Que nem se mostra.
Eu não dei por essa mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?”
  
(Cecília Meireles, em Flor de Poemas)

Quando chegaram a São Caetano do Sul, as mulheres não contavam com tantas oportunidades como as de hoje. A vida não foi nada fácil para as antigas sul-são-caetanenses, muitas vezes excluídas dos relatos históricos. Mas parte do que a cidade se tornou devemos a elas.
As primeiras mulheres dessa terra eram índias, provavelmente pertencentes a grande família dos Tupi-guaranis, que ocupava, em 1590, toda a costa brasileira, desde o Nordeste até o Sul. São Caetano do Sul ainda não existia e essa região era conhecida como Tijucuçu.
O pouco que sabemos sobre essas índias era que tinham as atribuições bem definidas, como tecer balaios e redes, produzir utensílios domésticos, cuidar dos filhos e plantar mandioca para a alimentação.

AS ITALIANAS - Por volta de 1877, começaram a chegar os primeiros imigrantes italianos, em sua maioria vindos do Vêneto. Foi a partir desse grupo que surgiu o primeiro Núcleo Colonial da então Fazenda São Caetano. Muitas mulheres compunham esse grupo e aqui cozinhavam, costuravam e lavavam as roupas.
Nada foi fácil para elas nesse começo. Não havia conforto, médicos, transporte, tratamento de água e esgoto, e nem mesmo cemitérios. Relatos sobre essas primeiras sul-são-caetanenses demonstram que o sofrimento não era só com a falta de conforto, mas com o clima e os insetos.
Às mulheres cabiam as atividades domésticas, as costura, rezas, lavagens de roupas nos rios da cidade e, mais tarde, com as olarias, um emprego. Eram nessas olarias que elas faziam dupla jornada.
 Entre vários relatos, destaca-se o de Vergilio Ferrari, que descreve a rotina de sua mãe, obrigada a se sentar sobre montes de tijolos, em frente ao barro, para amamentar os filhos.
Nesses anos de 1890, as mulheres que haviam ficado viúvas também não tinham o direito de assumir a família e, por isso, muitas vezes, perdiam a herança do marido. Sozinha, elas voltavam a ser encaradas como menores de idade, que dependiam de outros para ter os seus direitos respeitados.
Algumas conseguiam superar tantas dificuldades. É o caso de Ângela Garbelotto, que continuou tocando a pequena olaria deixada pelo marido. Outra foi Ana Martorelli que, com a morte do marido, trocou alguns terrenos por uma vaca e nela fez fortuna. Nesses primeiro tempos, a mortalidade era grande, registrava-se um falecimento a cada três dias devido à diarreia, reumatismo e outros problemas. Essas mazelas tornavam a presença feminina ainda mais necessárias na sociedade, pois muitas conheciam ervas e remédios caseiros.
Durante muito tempo, o espaço feminino ficou restrito à casa e aos rios que circulavam a região. Algumas personalidades conseguiam fugir à regra desempenhando atividades informais e nos comércios locais, como Marina Giacomini, também conhecida como “A Carbonara”. Ela tinha um sítio, atrás de uma fábrica de formicida, de onde tirava madeira e vendia em São Paulo. Outra que ficou registrada na história foi Assumpta Sestari, dona de um armazém na década de 1910.
No entanto, a maioria das mulheres desempenhava suas funções e trocava informações em espaços privados. Ao homem, cabia o espaço público, onde se fazia política e negócios.

FORA DE CASA - A partir do final do século 19, essa distinção torna-se turbulenta. Essa situação fica patente na significativa participação feminina nas indústrias da época.
Segundo o sociólogo José de Souza Martins, em 1910, não havia mulheres entre os operários da Fábrica de Formicida Paulista. Isso começa a mudar a partir de 1918. A Matarazzo computava 312 empregados e, entre eles, havia 38 mulheres. Elas faziam parte, em sua maioria, das fábricas de tecelagem e indústrias têxteis, tanto que, em 1912, dos 1.775 operários existentes em sete estabelecimentos fabris, 1.340 eram mulheres, de acordo com dados obtidos pelo Departamento Estadual do Trabalho.
Segundo Martins, foi por meio da fábrica que as mulheres de São Caetano romperam o espaço privado e conquistaram o público. Na política, apenas a partir de 1948, com o movimento autonomista da cidade, começam a aparecer os primeiros nomes femininos, como os de Itália Fiorotti e Olga Montanari.

Referências bibliográficas:

Cotidiano e História em São Caetano do Sul: Adriana M. C. Ramos e Mônica de Souza, Editora Hucitec, Prefeitura de São Caetano do Sul.

As Outras Vozes: Memórias femininas em São Caetano do Sul, Editora Hucitec.

Além dos Fragmentos: o feminismo e a construção do socialismo, Hilary Waiwright, Editora brasiliense, SP.