segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

A árvore da amizade

Você sabia que em São Caetano existe uma Árvore da Amizade? Sabe onde ela se localiza? Então descubra estas e outras informações neste post, escrito por Priscila Gorzoni, historiadora e pesquisadora da Fundação Pró-Memória.

A árvore da amizade

Priscila Gorzoni

Quem desce do ônibus no ponto central da Avenida Goiás, em frente à Praça dos Arcos (que tem o nome oficial de Praça Prefeito Luis Olinto Tortorello), não imagina que bem atrás da banca de flores existe uma árvore muito famosa chamada Árvore da Amizade.

Outro dia, passei próxima dela e, embora escondida e com pó sobre a placa, chama a atenção. A Árvore da Amizade é uma das mais antigas e que melhor simboliza São Caetano do Sul. Ela foi plantada em 1930, durante a visita de Paul Harris, fundador do Rotary Club International, ao município. A árvore é uma das mudas da árvore original da amizade.

Essa história começou quando o engenheiro Armando Arruda Pereira convidou Paul Harris para visitar sua casa, no Bairro da Fundação, em 1905. Ao receber a visita de Harris e sua esposa, Jean, Arruda ficou tão feliz que quis marcar o encontro com o plantio de um cedro em seu quintal como símbolo de sua amizade rotária. Nessa ocasião, Arruda disse: “Dentro de poucos anos, toda esta região terá um grande desenvolvimento e então chegará a hora de plantarmos muitos Rotarys por aqui”.

Plantar árvores por onde passava era um costume de Harris, tanto que antes do citado cedro, ele já havia plantado outras mudas no Brasil. Na mesma visita, havia plantado um ipê amarelo na Praça da República, em São Paulo.

Bem mais tarde, em 1955, durante uma reunião do Inter-Clubes, que contou com a presença de Manuel Gutierrez Duran, a tradicional Árvore da Amizade foi transferida para o Jardim Primeiro de Maio, antigo Paço Municipal, hoje conhecida como Praça Prefeito Luis Olinto Tortorello, onde também foi colocada uma placa de bronze, que tinha os principais dizeres: “Árvore da Amizade (cedro) plantada em 1936, por Paul P. Harris, na residência do companheiro Armando Arruda Pereira e replantada em 6 de fevereiro de 1955 pelo Rotary Club de São Caetano do Sul”.

Mas esta árvore não foi a única a marcar a história de São Caetano. Uma figueira se tornou emblema do Bairro Nova Gerty. Ela sobrevive ao tempo e se mantém imponente entre as ruas Visconde de Inhaúma, Itu e Nelly Pelegrino. O encontro dessas três vias se tornou conhecido como o Largo da Figueira. É difícil precisar o nascimento da figueira, estima-se que tenha ocorrido antes da chegada do farmacêutico Abrahão Leite Brito ao bairro, em setembro de 1948. (1)

E por falar em árvore que tal também citar a que serviu de base para a estátua de São Pedro, exposta em frente à USCS (Universidade Municipal de São Caetano do Sul), em 1975! Mas este assunto daria um post inteiro, então essa história fica para uma próxima...

Referência bibliográfica:“A árvore da amizade. A presença de Paul Harris em São Caetano do Sul”, de Jayme da Costa Patrão, Revista Raízes 15.
(1)   Migração e Urbanização: a presença de São Caetano na região do ABC, Ademir Medici PP 464.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

O misterioso curandeiro Vicente

Você já ouviu falar de Vicente, o curandeiro? De seus benzimento e curas? Teve familiares que vieram atrás dele? Então conheça a história desse homem, famoso personagem de São Caetano do Sul. O texto foi escrito por Priscila Gorzoni, pesquisadora e historiadora da Fundação Pró-Memória.

O misterioso curandeiro Vicente

Inaugurado em 1911, o Cemitério São Caetano não é só famoso por ser o primeiro da cidade. O local também é conhecido por ter, entre os seus falecidos, uma das figuras mais enigmáticas da história do município: Vicente, o curandeiro.

Esse famoso personagem era tão conhecido que, ainda hoje, é lembrado pelas romarias de doentes que vinham em busca de milagres e graças. Vicente alcançou o título de curandeiro por ter sido um dos maiores benzedores da região. Sua fama rompia distâncias, dificuldades e crenças, e o seu túmulo, ainda hoje, é um dos mais visitados do cemitério.

Demorou um pouco para eu encontrar a sua sepultura. O cemitério, embora pequeno, é repleto de criptas suntuosas e capelas esculturais. A de Vicente é baixa e simples. Está na parte de cima do sepulcrário, meio esquecido, sujo das folhas das árvores e do pó do tempo. Em meio a esse cenário, vejo a foto do curandeiro. A imagem retrata um homem de chapéu, barbas longas, olhar penetrante e semblante misterioso. Imagino a reação das pessoas ao se depararem com ele.

Contam que Vicente tinha um estilo peculiar de benzer. Ele recebia os doentes na porta de casa, com um caderno nas mãos, no qual anotava os nomes das pessoas e, em frente a eles, marcava uma cruz. Depois disso, Vicente dizia ao visitante que iria colocar seu nome nas luzes e pedia para que ela voltasse daqui a alguns dias. Nada era cobrado por suas curas.

Vicente não gostava que fizessem brincadeiras com os seus benzimentos. Um dia, veio a sua capela dois rapazes que moravam no Bairro do Ipiranga, na capital paulista. Um deles esfregou as mãos na boca, dizendo que sentia dor de dente. Vicente logo percebeu a mentira e disse: “Você veio me debochar. Então, vai ficar com dor de dente mesmo”. Imediatamente, o rapaz jogou-se no chão, com dores terríveis.

A segunda-feira era o dia de maior movimento, porque Vicente não atendia aos domingos. Antes de receber os visitantes, distribuía fichas e atendia rapidamente a cada um, colocando a mão no ombro das pessoas e indicando que passassem adiante. Outra curiosidade de Vicente era atender com a mão direita para cima. Perguntava o nome da pessoa e dizia as perturbações espirituais e as moléstias dos indivíduos. Por fim, recomendava novena.

Vicente morava no Bairro Santa Maria e faleceu em 1925. Por causa dele se criou uma estrada, onde milhares de pessoas passavam, só para conseguir uma cura. Enquanto olho sua foto, fico imaginando como seria receber seus benzimentos. Tenho uma base deles em relatos escritos por Ademir Medici, em seu livro Migração e Urbanização. O jornalista conta um dos casos, o de Caetana Palmiro, que, em 1920, com 2 anos de idade, não conseguia andar. Assim, seus pais resolveram levá-la a Vicente. O curandeiro tirou das mãos um anel de pedra preta e passou em Caetana. Depois, ordenou que a criança fosse levada ao pátio de sua casa, onde começou a andar.

O curandeiro não nasceu em São Caetano, veio com a família de Santo Amaro, entre 1906 e 1909. Era casado com Maria Joaquina de Jesus Vaz Rodrigues Vieira, que, na data do falecimento do marido, tinha 44 anos.

Os romeiros que vinham de longe tinham que ter paciência, pois chegar à casa de Vicente não era tarefa fácil. O casarão do benzedor estava localizado na parte alta do Bairro da Saúde (atual Santa Maria). Eles desembarcavam na estação ferroviária, caminhavam até o centro e entravam na Rua João Pessoa, conhecida na época como Virgilio Rezende. Então, ganhavam a Rua Goiás, que era chamada de Formicida, atingiam a Alameda São Caetano até que, no final da Rua Cassaquera, onde atualmente se encontra a Praça Francisco Pires, ficava a capela de Vicente.

Sua casa era uma fazenda, que tinha uma capela particular junto ao terreiro, toda decorada em tons dourados, pintada com figuras de anjos e santos. No altar de sua casa de orações, existia um Cristo crucificado e a imagem de São Pedro, cujo aniversário, em 29 de junho, era comemorado com festa.

Referência bibliográfica:
MÉDICI, Ademir: Migração e Urbanização: Presença de São Caetano do Sul na região do ABC, Editora Hucitec, São Caetano do Sul, 1993.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Lembranças do Cine Vitória e dos docinhos do Tio Vicente

Você que transita pelo Centro de São Caetano já deve ter reparado em um grande e, hoje, abandonado prédio no cruzamento das ruas Senador Roberto Simonsen e Baraldi. Há aqueles que conheceram o edifício como sendo igreja, bingo. Outros lembram-se dele como uma casa de shows. Mas a maior parte, certamente, se recorda do período em que o prédio abrigou o Cine Vitória, que marcou época em São Caetano.

Para todos vocês e também para aqueles que têm curiosidade em descobrir o que foi este local, boa leitura!!

Aproveitem o espaço dos comentários e nos contem suas lembranças!

Lembranças do Cine Vitória e dos docinhos do Tio Vicente

Priscila Gorzoni*

Andar pelas ruas do Centro de São Caetano é navegar pelas memórias do tempo. Alguns locais ainda guardam lembranças do que foram em nossa infância. Outros nos marcaram tanto, que ainda conseguimos fechar os olhos e vê-los exatamente como eram nas décadas passadas. Um deles é um grande prédio, no cruzamento das ruas Senador Roberto Simonsen e Baraldi. Essa construção, que já foi igreja, bingo e uma famosa casa de shows, um dia acomodou o Cine Vitória, que ainda ocupa o imaginário de muitos moradores da década de 1980.

Observando esse prédio hoje, que apenas lembra o cinema por sua localização, pelos ladrilhos escuros e pelas grandes portas centrais, me recordo da primeira vez que fui ao cinema.

Era então uma sessão das 14h, na qual a famosa matinê de domingo exibiria em primeira mão o filme Marcelino Pão e Vinho. E lá fui eu, acompanhada por minha irmã e minha mãe, comprar o bilhete de entrada. O Cine Vitória era o principal cinema de São Caetano, por isso vivia com longas filas. Majestoso, vivia cheio de gente e lotado de crianças.

Depois desse dia, em que entrei na sala de exibição e vi o tamanho do espaço, nunca mais deixei de visitar o cinema, virei fã. Passaram-se meses, anos, e então foi a vez de conferir E.T. – O Extraterrestre, filme muito concorrido. Para pegar um bom lugar, era preciso chegar bem cedo e enfrentar fila na porta.

Mesmo quando não tinha nada de novo para assistir, eu gostava de passar em frente ao prédio e ver os cartazes das próximas exibições.

Para quem não sabe, o Cine Vitória recebeu esse nome em homenagem ao seu criador, Vittorio Dal´Mas, que chegou ao município aos 12 anos de idade e tornou-se um importante empresário. Ele tinha o sonho de construir um grande edifício em São Caetano, mas só o concretizou após a autonomia político-administrativa do município, em outubro de 1948. Em 1949 foram feitos estudos e projetos do edifício e, em 1950, iniciou-se a construção do prédio.

Em 11 de fevereiro de 1995, o Cine Vitória foi lembrado durante uma palestra feita no prédio da Fundação Pró-Memória pelo engenheiro Mário Dal´Mas. Nela, ele relatou as expectativas da construção do Cine Vitória e o burburinho da cidade na época. Segundo Dal’Mal, as construções eram vistas como uma loucura, diziam que tal edifício não poderia ser comportado pela cidade. No entanto, a família empreendedora continuou firme em seus propósitos até que inaugurou o Cine Vitória em 29 de setembro de 1953 com a presença do então prefeito, Anacleto Campanella. “A avant-première foi patrocinada pelo Rotary de São Caetano do Sul em prol da construção de um posto de puericultura. O filme estrelado era O Falcão Dourado em technicolor”, conta o jornalista Ademir Médici (3). Depois disso, o local viveu seus altos e baixos, chegando a se transformar em dois cinemas: Cine Vitória I e II.

O projeto foi feito com recursos próprios e compreendia cinema, 56 salas comerciais, vários salões de festas e uma galeria de 12 mil metros quadrados. Ao longo dos anos, o prédio abrigou vários departamentos, entre eles os poderes Executivo e Legislativo, cartório, grêmio, sendo, inclusive, palco de exposições de arte (2).

A inauguração do Cine Vitória foi marcada pelo lançamento de uma revista. A publicação fez tanto sucesso, que acabou tendo um segundo número em comemoração ao aniversário da cidade.

Na primeira edição, o Cine Vitória era apresentado ao público como um equipamento de última geração: som e projeção simples X-L, o que o comparava aos melhores cinemas do mundo. Fora isso, os filmes exibidos eram programados pela Companhia Cinematográfica Serrador, Art Palácio, Ipiranga, Bandeirantes, Opera e Broadway.

Desde o início, o Vitória contou com poltronas estofadas, sistema moderno de projeção, acústica e ventilação bem-cuidadas e uma boa visibilidade, já que a sala foi construída em dois planos. Também foi realizado contrato com a Distribuidora Serrador para que os filmes recém-lançados fossem exibidos em primeira mão (4).

Mais tarde, o Vitória viveu sua primeira grande restauração para recuperar seu estilo original e tentar resistir à invasão dos shoppings. Ele ressurgiria com novo sistema de iluminação e som, em um investimento que totalizava 14 milhões de cruzeiros.

É impossível pensar no Cine Vitória e não se lembrar da Doceria Jóia ou do Tio Vicente. A doceria ficava em um local estratégico, na Rua Baraldi, exatamente em frente ao Cine Vitória. Os doces eram magníficos.

Tio Vicente se chamava Vicente Gombi e chegou a São Caetano do Sul em 1953. Nascido na cidade de Rokovci, na antiga Iugoslávia, em 1914, veio para a cidade estimulado pelos amigos que aqui viviam. Primeiro, morou na Vila Paula e teve como emprego carregar barro na Cerâmica São Caetano. Mais tarde, começou a trabalhar no restaurante Rutly como lavador de pratos e ali pegou gosto pela culinária. Em seguida, mudou de emprego, desta vez para uma doceria em São Paulo, sendo que, mais tarde, montou a sua própria doceria, que funcionou até o final da década de 1990.

Assim como a Doceria Jóia, o Cine Vitória perdeu força. Foram substituídos por outros estabelecimentos e a dinâmica da modernidade. No caso do Cine Vitória, a moda de construir cinemas dentro de shoppings enfraqueceu sua majestade e, então, ele se transformou em uma casa de shows.

A derrocada final aconteceu em uma terça-feira, 1° de setembro de 1998. Era então um dia comum, se não fosse pela última sessão de seu funcionamento. Na sala de cinema apenas 100 espectadores assistiram ao filme norte-americano Armageddon.

NOTAS:

(1)   XAVIER, Sônia Maria Franco, Os cinemas de São Caetano- Revista Raízes 39, julho de 1991.
(2)   DAL`MAS, Mário, Edifício Vitória: o ideal de um imigrante, Raízes Julho de 1995.
(3)   Jornal Diário do Grande ABC, Grande ABC Memória, Ademir Médici, setembro de 1953.
(4)   XAVIER, Sônia Maria Franco, Os cinemas de São Caetano- Revista Raízes 39, julho de 1991.

*Priscila Gorzoni é pesquisadora e historiadora da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul.


quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O Homem da Capa Preta

Para esta semana, separamos para vocês outro artigo da historiadora e pesquisadora da Fundação Pró-Memória Priscila Gorzoni. Desta vez, além de contarmos a história de uma figura curiosa de São Caetano do Sul, ela também pode ser considerada como amedrontadora. E eis que lhes apresento, o Homem da Capa Preta!!!

O Homem da Capa Preta

O Homem da Capa Preta é um dos personagens mais enigmáticos da década de 1940. Ele se tornou tão marcante na história de São Caetano do Sul, que pode ser considerado um mito regional. Assim como ocorre com outros seres misteriosos, poucos se arriscam a falar dele e os relatos lidos nunca são muito aprofundados. No entanto, esse mito é compartilhado e acreditado por toda a comunidade da qual faz parte. Como diria o sociólogo e antropólogo, Erving Goffman[1] em A representação do eu na vida cotidiana, “quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles”. É exatamente isso o que acontece com o Homem da Capa Preta. Todos sabem que é um personagem e se torna importante à medida que a comunidade o transforma em algo real que, por meio de sua postura, traz à tona os valores desta mesma comunidade.

Goffman explica que quando um indivíduo, ou, no caso, o Homem da Capa Preta apresenta-se diante dos outros, seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade e até realmente mais do que o comportamento do indivíduo como um todo.  

Além de reforçar os valores existentes nesta sociedade, o Homem da Capa Preta faz parte da história da cidade, encaixa-se na área da Cultura Popular, assunto tratado pelo folclorista Luís da Câmara Cascudo. Para aqueles que subestimam os mitos e assombrações, eles participam da essência intelectual humana e não há momento na história do mundo sem sua inevitável presença. “A elevação dos padrões de vida, o domínio da máquina, a cidade industrial ou tumultuada em sua grandeza assombrosa são outros tantos viveiros de superstição, velhas, novas, readaptadas às necessidades modernas e técnicas”, ressalta o historiador José Odair.

Na tentativa de resgatar um pouco desses mitos e superstições, foram lidos muitos artigos sobre São Caetano na busca desses personagens assombrosos, mas pouca informação foi encontrada sobre o assunto. Por isso, foram ouvidos vários moradores antigos e novos da cidade para que nos dessem seus relatos, cheios de pormenores, surpresas e curiosidades...

Assombrações no folclore - Se o folclorista Luis da Câmara Cascudo tivesse vindo para São Caetano mapear seus mitos assombrosos, certamente não deixaria de fora o Homem da Capa Preta, que entraria no ciclo da angústia infantil. Embora esse personagem não seja bem uma assombração, já que era alguém que se vestia ou fantasiava-se de Homem de Capa Preta, podemos considerá-lo um mito ou uma lenda.

Dentro do ciclo da angústia infantil, onde se encaixaria esse personagem, encontramos mitos e seres assombrosos, que têm por objetivo educar crianças e mulheres por meio da sugestão do medo. Sua presença assustadora impunha uma espécie de toque de recolher aos moradores de São Caetano nas décadas de 1920 e 1930.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come... - Nas décadas de 1920 e 1930, as mulheres eram as mais atemorizadas. Elas evitavam sair de casa após as 22h, por medo de encontrar o Homem da Capa Preta, como é conhecida uma figura sem rosto, magra, que vagava pelas ruas da cidade nas altas horas da noite, vestido com o item que o caracterizava. As pessoas que encontraram o Homem da Capa Preta juravam que ele perseguia quem vagava nas ruas de madrugada.

Esse Homem da Capa Preta, afinal, tomou tanta forma e força que passou a ser usado também como argumento de obediências às mães. Ao primeiro sinal de rebeldia dos filhos, elas logo avisavam: ‘Olha o Homem da Capa Preta! Ele pega você lá fora!’. Conclusão: o Homem do Saco Preto, de outras regiões, passou a ser em São Caetano o Homem da Capa Preta.

Mas não se enganem! Ainda segundo depoimentos, essa figura nada tinha de sobrenatural, muito pelo contrário. O Homem da Capa Preta era o juiz de paz João Rela, que adorava mostrar como era respeitado, vestindo uma capa preta que lhe caía abaixo dos joelhos.

O relato mais contundente dessa figura aparece quando Elvira e Olívia Buso saíram para fazer compras no açougue dos Lorenzini, na Rua Rio Branco, quando já escurecia. Atemorizadas pela escuridão da época, elas já saíram sugestionadas pelo temor da perseguição do Homem da Capa Preta. Ora, foi dito e feito! Pois, quando já estavam retornando, deram-se conta de que estavam sendo seguidas por um vulto. Então puseram-se  a correram, muito assustadas.

José de Souza Martins faz uma análise interessante sobre esse personagem curioso que surge exatamente na época de repressão policial junto aos operários comunistas. Ademir Médici, no livro Migração e Urbanização: a presença de São Caetano na região do ABC, dedica um pequeno espaço ao personagem. Ele conta que João Rela levou para o túmulo a fama de ser o Homem da Capa Preta. Todos sabiam que ele era o personagem enigmático. No entanto, nunca um inquérito foi aberto e nem uma prova mais concreta foi apresentada. Mas ficou a versão, assumida por ele próprio, com muito humor, entendida por amigos e familiares, colocada, vez ou outra, pela imprensa semanal.

O Homem da Capa Preta simbolizava não só uma lenda, mas o rigor disciplinar dos costumes da época, quando raras mulheres e crianças se permitiam sair às ruas tarde da noite. Portanto, não é à toa que eram as donzelas as mais assustadas com esta figura.

Quem foi ele? - João Rela nasceu em Itatiba, no interior de São Paulo, em 16 de setembro de 1889, filho de Giácomo e Antonieta Rela. Veio para o ABC na década de 1910. Foi chefe da estação ferroviária em Campo Grande e, em 1917, mudou-se para São Caetano, como chefe da estação local, na ferrovia São Paulo Railway. Além de padaria, ele teve também seu escritório de despachante. Foi vereador e juiz de paz, ale, de escrever poemas e contos. Faleceu no dia 3 de junho de 1970, aos 81 anos.


Referências bibliográficas:

CASCUDO, Luis Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: ed. Global, 2002.
________. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: ed. Global, 2002.
________. Locuções tradicionais no Brasil. São Paulo: Global, 2002.
MÉDICI, Ademir: Migração e Urbanização: Presença de São Caetano do Sul na região do ABC, Editora Hucitec, São Caetano do Sul, 1993.




[1] Nasceu no Canadá, em 1922, é sociólogo e antropólogo. Atualmente é professor de sociologia e faz pesquisas para a Universidade da Califórnia, em Berkeley. 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A Capela dos Cavana

Nesta quarta-feira (10/9), divulgamos mais um texto, escrito pela historiadora e pesquisadora da Fundação Pró-Memória Priscila Gorzoni. Hoje vocês conhecerão um local que existe em São Caetano do Sul desde o século 19, mas que muitos desconhecem a história que o envolve. Com vocês, a Capela dos Cavana!!!

Antes de desejar-lhes boa leitura, gostaríamos de fazer um convite a todos aqueles que também têm histórias interessantes para contar: envie seu texto para o email jornalismo@fpm.org.br. Estamos ansiosos para lê-lo e compartilhá-lo com outros leitores!


A Capela dos Cavana

Priscila Gorzoni*

Em todos os cantos e recantos do mundo existem lugares inusitados. Locais que destoam do tempo ou que parecem esquecidos de uma época. Em São Paulo, encontramos vários destes pontos, como o Edifício Joelma, a Casa das Rosas, o Castelinho da Rua Apa, a Capela dos Aflitos, o Edifício Martinelli, o Teatro Municipal, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, entre outros. Cada uma destas construções guarda a arquitetura e história de uma época.

As metrópoles escondem esses locais, que muitas vezes passam despercebidos em nossa vida acelerada. Eles podem ser chamados de lugares de memória[i], que são, antes de tudo, restos. Eles nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, manter aniversários, organizar celebrações, entre outros acontecimentos. Também podemos chamar esses locais de ilhas de passado conservadas[ii].

Conhecer um pouco destes locais é entrar nos lugares de memória ou nas ilhas de passado conservadas. É uma experiência fundamental para compreender a história e a memória da cidade e dos moradores que ali viveram e que por ali passaram.

Criar roteiros turísticos nesses pontos tem sido uma tendência atual em várias cidades brasileiras. Na capital paulista, a empresa Griffit criou um roteiro de quatro horas que sai do Largo do Arouche, passa pelo Castelinho da Rua Apa e termina no Edifício Joelma. O objetivo do passeio é contar um pouco da história da cidade por meio de seus prédios e lendas. Esse trabalho se iniciou no ano 2000. Há um ano, a mesma empresa também lançou o roteiro São Paulo Além dos Túmulos.

Mas não é só em São Paulo que encontramos esse tipo de turismo. Há também o exemplo de Recife, que desenvolveu o roteiro turístico Recife Assombrado, que passa por casarões, museus e teatros da cidade. A ideia é falar um pouco de cada um destes locais e despertar o interesse e a curiosidade dos moradores, turistas e pesquisadores em geral.

Em São Caetano, temos diversos exemplos destes pontos curiosos. Um deles é a Capela dos Cavana, localizada na Rua Luís Cavana, s/n°. Essa pequena capela branca, escondida em uma das travessas da Avenida Senador Roberto Simonsen, foi construída em homenagem a Santo Antônio, por Ângelo Cavana, e preservada pelas novas gerações da família.

Várias missas foram celebradas nessa capela a partir de junho de 1893. A história da família Cavana em São Caetano é bem antiga e, assim como outros moradores da cidade, seus integrantes conservavam a tradição religiosa dos antepassados, os imigrantes italianos.

Nos primeiros tempos de São Caetano, existia apenas a Igreja Matriz Velha, construída em 1883, no Bairro da Fundação. Mas os imigrantes italianos eram muito religiosos e tinham o costume de construir capelas nos terrenos de suas casas. Assim a família Cavana, que tinha uma grande área no Bairro Centro, sob o comando de dona Joana Cavana, matriarca da família, decidiu erguer a Capela dos Cavana.

Construída no século passado, se ainda existisse, ficaria a 100 metros de onde era o Cine Vitória, na Rua Baraldi. Na época, a capela era grande e espaçosa. Era ali que Adolphina Geccato e a jovem Santa Cavana, filha de Joana, ministravam aulas de catecismo, preparando meninas e meninos para a primeira comunhão. Todos os anos, em 13 de junho, dia de Santo Antônio, um padre deslocava-se da Matriz Velha para rezar uma missa na capela, que era assistida por centenas de fiéis. Contudo, após algum tempo, a capela foi demolida e uma nova construção, menor, sobrevive até hoje na Rua Luís Cavana.

Vale lembrar que naquela época as casas eram bem diferentes das atuais. Eram chamadas de cortiços e reuniam até 15 famílias em um mesmo terreno. O cortiço dos Cavana era referência e tinha a forma arredondada. Havia, como nos demais, uma solidariedade entre as famílias. No pátio eram realizadas festas juninas e outras celebrações.

Curiosidade - 1

A denominação de Vila Santo Antônio, que, posteriormente se generalizou em direção a outras colônias, nasceu da capela que os Cavana construíram. A expressão foi oficializada quando houve a abertura do loteamento nas terras dos Cavana, mas só viria a ser consagrada no final dos anos 1930.

Curiosidade - 2

Em 2003, a Fundação Pró-Memória sinalizou a Capela dos Cavana como um local de interesse histórico para a população como parte do projeto 2ª Caminhada da Memória de São Caetano do Sul, que integrou um total de três caminhadas históricas realizadas na cidade. Outros locais sinalizados nesta edição foram: Árvore da Amizade, Indústria de Porcelanas Teixeira, Edifício Vitória, Loja Maçônica Fraternidade São Caetano, Grêmio ideal - Rádio cacique, Edifício Fortaleza, Sociedade Religiosa Israelita, Capela Santo Antônio, Grupo Escola Senador Roberto Simonsen e a primeira sede da prefeitura de São Caetano.

Quem eram os Cavana?

A família de Pasquale Cavana chegou a São Caetano do Sul com a segunda leva dos imigrantes italianos, no início de 1878. Na mesma leva estava a família de Felippo Roveri, que se estabeleceu como colônia, ao lado dos Cavana.

Você sabia que...

O Bairro Santo Antônio foi formado a partir da instalação de olarias próximas à várzea do Rio dos Meninos e de um setor residencial na parte alta do bairro. A antiga Rua Santo Antônio, que atualmente se chama Avenida Senador Roberto Simonsen, recebeu esse nome em razão da Capela Santo Antônio. Até os anos 1940, no Bairro Santo Antônio, não havia igrejas, clubes e outros serviços. Em 1954, no aniversário da cidade, o bairro ganhou o Grupo Escolar Bartolomeu Bueno da Silva e o Jardim Primeiro de Maio. Em 1974, a Avenida Goiás mereceu grande ampliação.

Referências bibliográficas:

MÉDICI, Ademir: Migração e Urbanização: Presença de São Caetano do Sul na região do ABC, Editora Hucitec, São Caetano do Sul, 1993.

Era uma vez (crônica de uma época), Jayme da Costa Patrão, Revista Raízes número 4.

*É jornalista e pesquisadora, formada pela Universidade Metodista de São Paulo, em ciências sociais pela Universidade de São Paulo e em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Tem pós-graduação em fundamentos e artes pelo Instituto de Artes da Unesp de São Paulo e atualmente faz mestrado em história, com projeto de antropologia histórica pela PUC-SP. Como jornalista, escreve para as revistas National Geographic Brasil, da Editora Abril, História em Curso, da Editora Minuano, e para a Raízes, da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul. 





[i] Termo definido por Pierre Nora no texto Entre memória e história: a problemática dos lugares.
[ii] Termo citado por Maurice Halbwachs em A Memória Coletiva.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

As aventuras de Negão

Começamos nesta terça-feira a divulgar uma série de crônicas sobre a cidade de São Caetano do Sul, escritas pela pesquisadora e historiadora da Fundação Pró-Memória Priscila Gorzoni. Publicaremos uma crônica por semana.

Por meio de temas diversos, personagens até então anônimos e locais desconhecidos vão sendo desvendados pelos textos de Priscila, fazendo com que nós, leitores, descubramos outras facetas da cidade.

Antes de desejar-lhes boa leitura, gostaríamos de fazer um convite a todos aqueles que também têm histórias interessantes para contar: nos envie o texto para o email jornalismo@fpm.org.br. Estamos ansiosos!

As aventuras de Negão


Priscila Gorzoni*

“A grandeza de uma nação pode ser julgada pela forma com que seus animais são tratados”
Mahatma Ghandi

Mudei o meu trajeto diário até o trabalho só para ver o Negão, uma mistura de pequinês e sem raça definida. Eu estava preocupada com ele, imaginava que podia ser mais um cachorro de rua. Por sorte, descobri que não era.

A primeira vez que o vi, ele sacolejava o pequeno corpo peludo pela Rua Oswaldo Cruz, entre um carro e outro. Fiquei preocupada com sua integridade física, mas Negão já estava longe, não dava tempo de alcançá-lo para poder assegurar-me de que chegaria bem ao seu destino.

Negão, como todos os cachorros, é de uma inteligência fora do comum. Inteligência que ainda tira o sono de vários pesquisadores especializados no assunto. Eu nunca duvidei da inteligência dos animais.

Já faz mais de sete meses que o acompanho, e foi em uma destas minhas observações que descobri que Negão tem morada e dono. Quem se ocupa dele são os funcionários de um estacionamento localizado na Rua Amazonas. Ele é bem cuidado, gordinho e, pelo seu andar, já tem certa idade.

Uma noite, voltando de uma palestra, o vi perambulando pelos arredores de um jardim. Ele ia longe, andar lento, balançado, feliz. Caía uma chuvinha fina e fria, mas Negão parecia não se importar com o tempo. Quando percebi, ele já havia virado a esquina, e provavelmente voltado para a sua morada.

Preocupada, perguntei para um guarda sobre o cachorrinho. Ele me informou que Negão pertencia ao dono do estacionamento e que todos os moradores ajudavam a cuidar dele. Fiquei mais aliviada. Alguns dias depois, fiz contato com a Associação Protetora dos Animais de São Caetano do Sul, e eles me informaram que Negão fazia visitas frequentes ao veterinário. Ele me parecia bem, apesar dos pelos emaranhados.

Nunca vi o Negão bravo. Só uma vez, quando ele começou a latir para um homem embriagado que passava em sua calçada. Neste dia, ele mostrou os pequenos dentinhos e avançou sobre o invasor.

Em outra manhã, ele voltava de seu passeio matinal, em passos lentos, quando parou exatamente ao meu lado para atravessar a Rua Amazonas. Eu olhei para ele, decidida a atravessá-lo. Ele me olhou de volta, parecia me conhecer, e então eu o chamei: ‘-Vem, vem!’.

Ele me olhou um pouco desconfiado, algo que considerei importante para os animais, já que, infelizmente, os seres humanos não são tão confiáveis.

Hoje novamente mudei o meu trajeto, mas não vi o Negão. Imaginei que estaria fazendo seu passeio matinal...

*É jornalista e pesquisadora, formada pela Universidade Metodista de São Paulo, em ciências sociais pela Universidade de São Paulo e em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Tem pós-graduação em fundamentos e artes pelo Instituto de Artes da Unesp de São Paulo e atualmente faz mestrado em história, com projeto de antropologia histórica pela PUC-SP. Como jornalista, escreve para as revistas National Geographic Brasil, da Editora Abril, História em Curso, da Editora Minuano, e para a

Raízes, da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul. 

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Barroco e Barraco

Desde 14 de janeiro, a Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul promove todas terças, quintas e sábados o Ateliê Experimental de Técnicas de Artes Gráficas com o mestre impressor Roberto Gyarfi, na Casa de Vidro. 

As inscrições rapidamente se encerraram, pois todos queriam ter a chance e produzir e conversar com o grande mestre. Durante sua participação nas oficinas, o artista plástico João Alberto Tessarini tem uma outra percepção do evento que se desenrola ao seu redor e resolve escrever o texto nonsense sobre esta experiência.

Num segundo momento, do Barroco ele chega ao Barraco, o qual vocês conferem logo abaixo. Esperamos que vocês apreciem a leitura e se inspirem para escreverem outros textos e nos enviarem para o email jornalismo@fpm.org.br!

BARROCO


Lá atrás no tempo, lápis só tive toco. Depois vieram aqueles que carregam a cor pela metade em caixinha de seis. Com prego eu feria a umidade da parede na tentativa de libertar os encantados que viviam atrás das manchas. Com prego entalhava a lateral do guarda-roupa, não em busca de formas e sim do inebriante perfume da imbuia. Nunca perguntei por que, só sentia que precisava daquele canto do quarto. Bunda no chão de ladrilhos hidráulicos, pernas cruzadas e pés descalços, camisa quase nunca, o canto quase sempre, o prego um sexto dedo.

Mas, não era só esse noventa graus que me atraía: o redondo e a penumbra das passagens gigantes do córrego endireitado pelos adultos; o oco dos troncos deitados das árvores que já não queriam misturar as nuvens em dia de vento, assim como pincéis gigantes; no muro os buraquinhos-ninho e os ovinhos de lagartixa me faziam retornar, dia após dia, na esperança de testemunhar o nascimento, nunca deu certo, o destino das tantas vezes sempre foi uma casquinha quebrada e vazia onde eu depositava mais interrogações. Isso não mudava nada, eu voltava e voltava.

Assim, ângulos retos, redondos, ocos, tons sobre tons, riscos de luz que atravessavam as copas das árvores e ficavam tentando furar o chão como a criança que enfia a cabeça no colo da mãe, talvez fruto de uma espécie de nostalgia de retorno intra-uterino. O papel manilha e o seu jeito descuidado foi a combinação perfeita para os meus riscos sem rumo e prumo. Alcançar a outra margem do córrego montado e escorregando, tronco e pélvis em movimento constante sobre a bananeira, pintando de nódoa o cavalo do calção foi uma experiência que trouxe a certeza de que é possível atravessar abismos.

Acabei de escrever o que você leu. Tive um dia de muito trabalho no ateliê e quis compartilhar as lembranças que me animaram. Estou conversando com uma pedra, ela é minha confidente, logo uma nova gravura, uma litogravura. Pássaros de brinquedo, insetos e um ovo iniciam transbordar do coração calcáreo. A composição final será transferida com a cumplicidade do mestre impressor sobre um papel composto por fibras de linho. Eu e a pedra, sem subterfúgios, o gesto está lá misturado ao acaso da matéria gordurosa depositada com todo o respeito sobre a superfície polida, um embate que se avizinha e envolve poderoso. Há que se ter coragem, é sempre a verdade que grava. A pedra não perdoa porque não julga, mas não esquece. Esse encontro se repetirá? Não sei, mas anseio por ele.

Já pensei que nunca tive nada em abundância, hoje sei que tive e tenho a poesia de menino.

BARRACO

Cavaletes e cadeiras brincam embaixo da mesa. Em cima, as pedras testemunham conversa de gente – elas, as pedras, claro, manterão segredo absoluto – somente as imagens gravadas serão compartilhadas. Mais uma vez serei um dos últimos a viver a intensa expectativa da transferência do gravado para o papel. Dessa vez está existindo um tempo de espera maior, os bichos que estou desenhando insistem em escapar para os jardins da praça. Vão e voltam. Eu espero.