quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O Homem da Capa Preta

Para esta semana, separamos para vocês outro artigo da historiadora e pesquisadora da Fundação Pró-Memória Priscila Gorzoni. Desta vez, além de contarmos a história de uma figura curiosa de São Caetano do Sul, ela também pode ser considerada como amedrontadora. E eis que lhes apresento, o Homem da Capa Preta!!!

O Homem da Capa Preta

O Homem da Capa Preta é um dos personagens mais enigmáticos da década de 1940. Ele se tornou tão marcante na história de São Caetano do Sul, que pode ser considerado um mito regional. Assim como ocorre com outros seres misteriosos, poucos se arriscam a falar dele e os relatos lidos nunca são muito aprofundados. No entanto, esse mito é compartilhado e acreditado por toda a comunidade da qual faz parte. Como diria o sociólogo e antropólogo, Erving Goffman[1] em A representação do eu na vida cotidiana, “quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles”. É exatamente isso o que acontece com o Homem da Capa Preta. Todos sabem que é um personagem e se torna importante à medida que a comunidade o transforma em algo real que, por meio de sua postura, traz à tona os valores desta mesma comunidade.

Goffman explica que quando um indivíduo, ou, no caso, o Homem da Capa Preta apresenta-se diante dos outros, seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente reconhecidos pela sociedade e até realmente mais do que o comportamento do indivíduo como um todo.  

Além de reforçar os valores existentes nesta sociedade, o Homem da Capa Preta faz parte da história da cidade, encaixa-se na área da Cultura Popular, assunto tratado pelo folclorista Luís da Câmara Cascudo. Para aqueles que subestimam os mitos e assombrações, eles participam da essência intelectual humana e não há momento na história do mundo sem sua inevitável presença. “A elevação dos padrões de vida, o domínio da máquina, a cidade industrial ou tumultuada em sua grandeza assombrosa são outros tantos viveiros de superstição, velhas, novas, readaptadas às necessidades modernas e técnicas”, ressalta o historiador José Odair.

Na tentativa de resgatar um pouco desses mitos e superstições, foram lidos muitos artigos sobre São Caetano na busca desses personagens assombrosos, mas pouca informação foi encontrada sobre o assunto. Por isso, foram ouvidos vários moradores antigos e novos da cidade para que nos dessem seus relatos, cheios de pormenores, surpresas e curiosidades...

Assombrações no folclore - Se o folclorista Luis da Câmara Cascudo tivesse vindo para São Caetano mapear seus mitos assombrosos, certamente não deixaria de fora o Homem da Capa Preta, que entraria no ciclo da angústia infantil. Embora esse personagem não seja bem uma assombração, já que era alguém que se vestia ou fantasiava-se de Homem de Capa Preta, podemos considerá-lo um mito ou uma lenda.

Dentro do ciclo da angústia infantil, onde se encaixaria esse personagem, encontramos mitos e seres assombrosos, que têm por objetivo educar crianças e mulheres por meio da sugestão do medo. Sua presença assustadora impunha uma espécie de toque de recolher aos moradores de São Caetano nas décadas de 1920 e 1930.

Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come... - Nas décadas de 1920 e 1930, as mulheres eram as mais atemorizadas. Elas evitavam sair de casa após as 22h, por medo de encontrar o Homem da Capa Preta, como é conhecida uma figura sem rosto, magra, que vagava pelas ruas da cidade nas altas horas da noite, vestido com o item que o caracterizava. As pessoas que encontraram o Homem da Capa Preta juravam que ele perseguia quem vagava nas ruas de madrugada.

Esse Homem da Capa Preta, afinal, tomou tanta forma e força que passou a ser usado também como argumento de obediências às mães. Ao primeiro sinal de rebeldia dos filhos, elas logo avisavam: ‘Olha o Homem da Capa Preta! Ele pega você lá fora!’. Conclusão: o Homem do Saco Preto, de outras regiões, passou a ser em São Caetano o Homem da Capa Preta.

Mas não se enganem! Ainda segundo depoimentos, essa figura nada tinha de sobrenatural, muito pelo contrário. O Homem da Capa Preta era o juiz de paz João Rela, que adorava mostrar como era respeitado, vestindo uma capa preta que lhe caía abaixo dos joelhos.

O relato mais contundente dessa figura aparece quando Elvira e Olívia Buso saíram para fazer compras no açougue dos Lorenzini, na Rua Rio Branco, quando já escurecia. Atemorizadas pela escuridão da época, elas já saíram sugestionadas pelo temor da perseguição do Homem da Capa Preta. Ora, foi dito e feito! Pois, quando já estavam retornando, deram-se conta de que estavam sendo seguidas por um vulto. Então puseram-se  a correram, muito assustadas.

José de Souza Martins faz uma análise interessante sobre esse personagem curioso que surge exatamente na época de repressão policial junto aos operários comunistas. Ademir Médici, no livro Migração e Urbanização: a presença de São Caetano na região do ABC, dedica um pequeno espaço ao personagem. Ele conta que João Rela levou para o túmulo a fama de ser o Homem da Capa Preta. Todos sabiam que ele era o personagem enigmático. No entanto, nunca um inquérito foi aberto e nem uma prova mais concreta foi apresentada. Mas ficou a versão, assumida por ele próprio, com muito humor, entendida por amigos e familiares, colocada, vez ou outra, pela imprensa semanal.

O Homem da Capa Preta simbolizava não só uma lenda, mas o rigor disciplinar dos costumes da época, quando raras mulheres e crianças se permitiam sair às ruas tarde da noite. Portanto, não é à toa que eram as donzelas as mais assustadas com esta figura.

Quem foi ele? - João Rela nasceu em Itatiba, no interior de São Paulo, em 16 de setembro de 1889, filho de Giácomo e Antonieta Rela. Veio para o ABC na década de 1910. Foi chefe da estação ferroviária em Campo Grande e, em 1917, mudou-se para São Caetano, como chefe da estação local, na ferrovia São Paulo Railway. Além de padaria, ele teve também seu escritório de despachante. Foi vereador e juiz de paz, ale, de escrever poemas e contos. Faleceu no dia 3 de junho de 1970, aos 81 anos.


Referências bibliográficas:

CASCUDO, Luis Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: ed. Global, 2002.
________. Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: ed. Global, 2002.
________. Locuções tradicionais no Brasil. São Paulo: Global, 2002.
MÉDICI, Ademir: Migração e Urbanização: Presença de São Caetano do Sul na região do ABC, Editora Hucitec, São Caetano do Sul, 1993.




[1] Nasceu no Canadá, em 1922, é sociólogo e antropólogo. Atualmente é professor de sociologia e faz pesquisas para a Universidade da Califórnia, em Berkeley. 

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

A Capela dos Cavana

Nesta quarta-feira (10/9), divulgamos mais um texto, escrito pela historiadora e pesquisadora da Fundação Pró-Memória Priscila Gorzoni. Hoje vocês conhecerão um local que existe em São Caetano do Sul desde o século 19, mas que muitos desconhecem a história que o envolve. Com vocês, a Capela dos Cavana!!!

Antes de desejar-lhes boa leitura, gostaríamos de fazer um convite a todos aqueles que também têm histórias interessantes para contar: envie seu texto para o email jornalismo@fpm.org.br. Estamos ansiosos para lê-lo e compartilhá-lo com outros leitores!


A Capela dos Cavana

Priscila Gorzoni*

Em todos os cantos e recantos do mundo existem lugares inusitados. Locais que destoam do tempo ou que parecem esquecidos de uma época. Em São Paulo, encontramos vários destes pontos, como o Edifício Joelma, a Casa das Rosas, o Castelinho da Rua Apa, a Capela dos Aflitos, o Edifício Martinelli, o Teatro Municipal, a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, entre outros. Cada uma destas construções guarda a arquitetura e história de uma época.

As metrópoles escondem esses locais, que muitas vezes passam despercebidos em nossa vida acelerada. Eles podem ser chamados de lugares de memória[i], que são, antes de tudo, restos. Eles nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, manter aniversários, organizar celebrações, entre outros acontecimentos. Também podemos chamar esses locais de ilhas de passado conservadas[ii].

Conhecer um pouco destes locais é entrar nos lugares de memória ou nas ilhas de passado conservadas. É uma experiência fundamental para compreender a história e a memória da cidade e dos moradores que ali viveram e que por ali passaram.

Criar roteiros turísticos nesses pontos tem sido uma tendência atual em várias cidades brasileiras. Na capital paulista, a empresa Griffit criou um roteiro de quatro horas que sai do Largo do Arouche, passa pelo Castelinho da Rua Apa e termina no Edifício Joelma. O objetivo do passeio é contar um pouco da história da cidade por meio de seus prédios e lendas. Esse trabalho se iniciou no ano 2000. Há um ano, a mesma empresa também lançou o roteiro São Paulo Além dos Túmulos.

Mas não é só em São Paulo que encontramos esse tipo de turismo. Há também o exemplo de Recife, que desenvolveu o roteiro turístico Recife Assombrado, que passa por casarões, museus e teatros da cidade. A ideia é falar um pouco de cada um destes locais e despertar o interesse e a curiosidade dos moradores, turistas e pesquisadores em geral.

Em São Caetano, temos diversos exemplos destes pontos curiosos. Um deles é a Capela dos Cavana, localizada na Rua Luís Cavana, s/n°. Essa pequena capela branca, escondida em uma das travessas da Avenida Senador Roberto Simonsen, foi construída em homenagem a Santo Antônio, por Ângelo Cavana, e preservada pelas novas gerações da família.

Várias missas foram celebradas nessa capela a partir de junho de 1893. A história da família Cavana em São Caetano é bem antiga e, assim como outros moradores da cidade, seus integrantes conservavam a tradição religiosa dos antepassados, os imigrantes italianos.

Nos primeiros tempos de São Caetano, existia apenas a Igreja Matriz Velha, construída em 1883, no Bairro da Fundação. Mas os imigrantes italianos eram muito religiosos e tinham o costume de construir capelas nos terrenos de suas casas. Assim a família Cavana, que tinha uma grande área no Bairro Centro, sob o comando de dona Joana Cavana, matriarca da família, decidiu erguer a Capela dos Cavana.

Construída no século passado, se ainda existisse, ficaria a 100 metros de onde era o Cine Vitória, na Rua Baraldi. Na época, a capela era grande e espaçosa. Era ali que Adolphina Geccato e a jovem Santa Cavana, filha de Joana, ministravam aulas de catecismo, preparando meninas e meninos para a primeira comunhão. Todos os anos, em 13 de junho, dia de Santo Antônio, um padre deslocava-se da Matriz Velha para rezar uma missa na capela, que era assistida por centenas de fiéis. Contudo, após algum tempo, a capela foi demolida e uma nova construção, menor, sobrevive até hoje na Rua Luís Cavana.

Vale lembrar que naquela época as casas eram bem diferentes das atuais. Eram chamadas de cortiços e reuniam até 15 famílias em um mesmo terreno. O cortiço dos Cavana era referência e tinha a forma arredondada. Havia, como nos demais, uma solidariedade entre as famílias. No pátio eram realizadas festas juninas e outras celebrações.

Curiosidade - 1

A denominação de Vila Santo Antônio, que, posteriormente se generalizou em direção a outras colônias, nasceu da capela que os Cavana construíram. A expressão foi oficializada quando houve a abertura do loteamento nas terras dos Cavana, mas só viria a ser consagrada no final dos anos 1930.

Curiosidade - 2

Em 2003, a Fundação Pró-Memória sinalizou a Capela dos Cavana como um local de interesse histórico para a população como parte do projeto 2ª Caminhada da Memória de São Caetano do Sul, que integrou um total de três caminhadas históricas realizadas na cidade. Outros locais sinalizados nesta edição foram: Árvore da Amizade, Indústria de Porcelanas Teixeira, Edifício Vitória, Loja Maçônica Fraternidade São Caetano, Grêmio ideal - Rádio cacique, Edifício Fortaleza, Sociedade Religiosa Israelita, Capela Santo Antônio, Grupo Escola Senador Roberto Simonsen e a primeira sede da prefeitura de São Caetano.

Quem eram os Cavana?

A família de Pasquale Cavana chegou a São Caetano do Sul com a segunda leva dos imigrantes italianos, no início de 1878. Na mesma leva estava a família de Felippo Roveri, que se estabeleceu como colônia, ao lado dos Cavana.

Você sabia que...

O Bairro Santo Antônio foi formado a partir da instalação de olarias próximas à várzea do Rio dos Meninos e de um setor residencial na parte alta do bairro. A antiga Rua Santo Antônio, que atualmente se chama Avenida Senador Roberto Simonsen, recebeu esse nome em razão da Capela Santo Antônio. Até os anos 1940, no Bairro Santo Antônio, não havia igrejas, clubes e outros serviços. Em 1954, no aniversário da cidade, o bairro ganhou o Grupo Escolar Bartolomeu Bueno da Silva e o Jardim Primeiro de Maio. Em 1974, a Avenida Goiás mereceu grande ampliação.

Referências bibliográficas:

MÉDICI, Ademir: Migração e Urbanização: Presença de São Caetano do Sul na região do ABC, Editora Hucitec, São Caetano do Sul, 1993.

Era uma vez (crônica de uma época), Jayme da Costa Patrão, Revista Raízes número 4.

*É jornalista e pesquisadora, formada pela Universidade Metodista de São Paulo, em ciências sociais pela Universidade de São Paulo e em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Tem pós-graduação em fundamentos e artes pelo Instituto de Artes da Unesp de São Paulo e atualmente faz mestrado em história, com projeto de antropologia histórica pela PUC-SP. Como jornalista, escreve para as revistas National Geographic Brasil, da Editora Abril, História em Curso, da Editora Minuano, e para a Raízes, da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul. 





[i] Termo definido por Pierre Nora no texto Entre memória e história: a problemática dos lugares.
[ii] Termo citado por Maurice Halbwachs em A Memória Coletiva.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

As aventuras de Negão

Começamos nesta terça-feira a divulgar uma série de crônicas sobre a cidade de São Caetano do Sul, escritas pela pesquisadora e historiadora da Fundação Pró-Memória Priscila Gorzoni. Publicaremos uma crônica por semana.

Por meio de temas diversos, personagens até então anônimos e locais desconhecidos vão sendo desvendados pelos textos de Priscila, fazendo com que nós, leitores, descubramos outras facetas da cidade.

Antes de desejar-lhes boa leitura, gostaríamos de fazer um convite a todos aqueles que também têm histórias interessantes para contar: nos envie o texto para o email jornalismo@fpm.org.br. Estamos ansiosos!

As aventuras de Negão


Priscila Gorzoni*

“A grandeza de uma nação pode ser julgada pela forma com que seus animais são tratados”
Mahatma Ghandi

Mudei o meu trajeto diário até o trabalho só para ver o Negão, uma mistura de pequinês e sem raça definida. Eu estava preocupada com ele, imaginava que podia ser mais um cachorro de rua. Por sorte, descobri que não era.

A primeira vez que o vi, ele sacolejava o pequeno corpo peludo pela Rua Oswaldo Cruz, entre um carro e outro. Fiquei preocupada com sua integridade física, mas Negão já estava longe, não dava tempo de alcançá-lo para poder assegurar-me de que chegaria bem ao seu destino.

Negão, como todos os cachorros, é de uma inteligência fora do comum. Inteligência que ainda tira o sono de vários pesquisadores especializados no assunto. Eu nunca duvidei da inteligência dos animais.

Já faz mais de sete meses que o acompanho, e foi em uma destas minhas observações que descobri que Negão tem morada e dono. Quem se ocupa dele são os funcionários de um estacionamento localizado na Rua Amazonas. Ele é bem cuidado, gordinho e, pelo seu andar, já tem certa idade.

Uma noite, voltando de uma palestra, o vi perambulando pelos arredores de um jardim. Ele ia longe, andar lento, balançado, feliz. Caía uma chuvinha fina e fria, mas Negão parecia não se importar com o tempo. Quando percebi, ele já havia virado a esquina, e provavelmente voltado para a sua morada.

Preocupada, perguntei para um guarda sobre o cachorrinho. Ele me informou que Negão pertencia ao dono do estacionamento e que todos os moradores ajudavam a cuidar dele. Fiquei mais aliviada. Alguns dias depois, fiz contato com a Associação Protetora dos Animais de São Caetano do Sul, e eles me informaram que Negão fazia visitas frequentes ao veterinário. Ele me parecia bem, apesar dos pelos emaranhados.

Nunca vi o Negão bravo. Só uma vez, quando ele começou a latir para um homem embriagado que passava em sua calçada. Neste dia, ele mostrou os pequenos dentinhos e avançou sobre o invasor.

Em outra manhã, ele voltava de seu passeio matinal, em passos lentos, quando parou exatamente ao meu lado para atravessar a Rua Amazonas. Eu olhei para ele, decidida a atravessá-lo. Ele me olhou de volta, parecia me conhecer, e então eu o chamei: ‘-Vem, vem!’.

Ele me olhou um pouco desconfiado, algo que considerei importante para os animais, já que, infelizmente, os seres humanos não são tão confiáveis.

Hoje novamente mudei o meu trajeto, mas não vi o Negão. Imaginei que estaria fazendo seu passeio matinal...

*É jornalista e pesquisadora, formada pela Universidade Metodista de São Paulo, em ciências sociais pela Universidade de São Paulo e em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Tem pós-graduação em fundamentos e artes pelo Instituto de Artes da Unesp de São Paulo e atualmente faz mestrado em história, com projeto de antropologia histórica pela PUC-SP. Como jornalista, escreve para as revistas National Geographic Brasil, da Editora Abril, História em Curso, da Editora Minuano, e para a

Raízes, da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul.