Por meio de temas diversos, personagens até então anônimos e locais desconhecidos vão sendo desvendados pelos textos de Priscila, fazendo com que nós, leitores, descubramos outras facetas da cidade.
Antes de desejar-lhes boa leitura, gostaríamos de fazer um convite a todos aqueles que também têm histórias interessantes para contar: nos envie o texto para o email jornalismo@fpm.org.br. Estamos ansiosos!
As aventuras de Negão
Priscila Gorzoni*
“A grandeza de uma
nação pode ser julgada pela forma com que seus animais são tratados”
Mahatma Ghandi
Mudei o meu trajeto diário até o
trabalho só para ver o Negão, uma mistura de pequinês e sem raça definida. Eu
estava preocupada com ele, imaginava que podia ser mais um cachorro de rua. Por
sorte, descobri que não era.
A primeira vez que o vi, ele sacolejava
o pequeno corpo peludo pela Rua Oswaldo Cruz, entre um carro e outro. Fiquei
preocupada com sua integridade física, mas Negão já estava longe, não dava
tempo de alcançá-lo para poder assegurar-me de que chegaria bem ao seu destino.
Negão, como todos os cachorros, é
de uma inteligência fora do comum. Inteligência que ainda tira o sono de vários
pesquisadores especializados no assunto. Eu nunca duvidei da inteligência dos
animais.
Já faz mais de sete meses que o acompanho,
e foi em uma destas minhas observações que descobri que Negão tem morada e
dono. Quem se ocupa dele são os funcionários de um estacionamento localizado na
Rua Amazonas. Ele é bem cuidado, gordinho e, pelo seu andar, já tem certa
idade.
Uma noite, voltando de uma
palestra, o vi perambulando pelos arredores de um jardim. Ele ia longe, andar
lento, balançado, feliz. Caía uma chuvinha fina e fria, mas Negão parecia não se
importar com o tempo. Quando percebi, ele já havia virado a esquina, e provavelmente
voltado para a sua morada.
Preocupada, perguntei para um
guarda sobre o cachorrinho. Ele me informou que Negão pertencia ao dono do
estacionamento e que todos os moradores ajudavam a cuidar dele. Fiquei mais
aliviada. Alguns dias depois, fiz contato com a Associação Protetora dos
Animais de São Caetano do Sul, e eles me informaram que Negão fazia visitas
frequentes ao veterinário. Ele me parecia bem, apesar dos pelos emaranhados.
Nunca vi o Negão bravo. Só uma
vez, quando ele começou a latir para um homem embriagado que passava em sua
calçada. Neste dia, ele mostrou os pequenos dentinhos e avançou sobre o
invasor.
Em outra manhã, ele voltava de
seu passeio matinal, em passos lentos, quando parou exatamente ao meu lado para
atravessar a Rua Amazonas. Eu olhei para ele, decidida a atravessá-lo. Ele me
olhou de volta, parecia me conhecer, e então eu o chamei: ‘-Vem, vem!’.
Ele me olhou um pouco
desconfiado, algo que considerei importante para os animais, já que,
infelizmente, os seres humanos não são tão confiáveis.
Hoje novamente mudei o meu
trajeto, mas não vi o Negão. Imaginei que estaria fazendo seu passeio
matinal...
*É jornalista e pesquisadora,
formada pela Universidade Metodista de São Paulo, em ciências sociais pela Universidade
de São Paulo e em direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Tem pós-graduação
em fundamentos e artes pelo Instituto de Artes da Unesp de São Paulo e
atualmente faz mestrado em história, com projeto de antropologia histórica pela
PUC-SP. Como jornalista, escreve para as revistas National Geographic Brasil, da Editora Abril, História em Curso, da Editora Minuano, e para a
Raízes, da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul.
Nenhum comentário:
Postar um comentário