terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Barroco e Barraco

Desde 14 de janeiro, a Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul promove todas terças, quintas e sábados o Ateliê Experimental de Técnicas de Artes Gráficas com o mestre impressor Roberto Gyarfi, na Casa de Vidro. 

As inscrições rapidamente se encerraram, pois todos queriam ter a chance e produzir e conversar com o grande mestre. Durante sua participação nas oficinas, o artista plástico João Alberto Tessarini tem uma outra percepção do evento que se desenrola ao seu redor e resolve escrever o texto nonsense sobre esta experiência.

Num segundo momento, do Barroco ele chega ao Barraco, o qual vocês conferem logo abaixo. Esperamos que vocês apreciem a leitura e se inspirem para escreverem outros textos e nos enviarem para o email jornalismo@fpm.org.br!

BARROCO


Lá atrás no tempo, lápis só tive toco. Depois vieram aqueles que carregam a cor pela metade em caixinha de seis. Com prego eu feria a umidade da parede na tentativa de libertar os encantados que viviam atrás das manchas. Com prego entalhava a lateral do guarda-roupa, não em busca de formas e sim do inebriante perfume da imbuia. Nunca perguntei por que, só sentia que precisava daquele canto do quarto. Bunda no chão de ladrilhos hidráulicos, pernas cruzadas e pés descalços, camisa quase nunca, o canto quase sempre, o prego um sexto dedo.

Mas, não era só esse noventa graus que me atraía: o redondo e a penumbra das passagens gigantes do córrego endireitado pelos adultos; o oco dos troncos deitados das árvores que já não queriam misturar as nuvens em dia de vento, assim como pincéis gigantes; no muro os buraquinhos-ninho e os ovinhos de lagartixa me faziam retornar, dia após dia, na esperança de testemunhar o nascimento, nunca deu certo, o destino das tantas vezes sempre foi uma casquinha quebrada e vazia onde eu depositava mais interrogações. Isso não mudava nada, eu voltava e voltava.

Assim, ângulos retos, redondos, ocos, tons sobre tons, riscos de luz que atravessavam as copas das árvores e ficavam tentando furar o chão como a criança que enfia a cabeça no colo da mãe, talvez fruto de uma espécie de nostalgia de retorno intra-uterino. O papel manilha e o seu jeito descuidado foi a combinação perfeita para os meus riscos sem rumo e prumo. Alcançar a outra margem do córrego montado e escorregando, tronco e pélvis em movimento constante sobre a bananeira, pintando de nódoa o cavalo do calção foi uma experiência que trouxe a certeza de que é possível atravessar abismos.

Acabei de escrever o que você leu. Tive um dia de muito trabalho no ateliê e quis compartilhar as lembranças que me animaram. Estou conversando com uma pedra, ela é minha confidente, logo uma nova gravura, uma litogravura. Pássaros de brinquedo, insetos e um ovo iniciam transbordar do coração calcáreo. A composição final será transferida com a cumplicidade do mestre impressor sobre um papel composto por fibras de linho. Eu e a pedra, sem subterfúgios, o gesto está lá misturado ao acaso da matéria gordurosa depositada com todo o respeito sobre a superfície polida, um embate que se avizinha e envolve poderoso. Há que se ter coragem, é sempre a verdade que grava. A pedra não perdoa porque não julga, mas não esquece. Esse encontro se repetirá? Não sei, mas anseio por ele.

Já pensei que nunca tive nada em abundância, hoje sei que tive e tenho a poesia de menino.

BARRACO

Cavaletes e cadeiras brincam embaixo da mesa. Em cima, as pedras testemunham conversa de gente – elas, as pedras, claro, manterão segredo absoluto – somente as imagens gravadas serão compartilhadas. Mais uma vez serei um dos últimos a viver a intensa expectativa da transferência do gravado para o papel. Dessa vez está existindo um tempo de espera maior, os bichos que estou desenhando insistem em escapar para os jardins da praça. Vão e voltam. Eu espero.

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