O Homem da Capa Preta
O Homem da Capa Preta é um dos
personagens mais enigmáticos da década de 1940. Ele se tornou tão marcante na
história de São Caetano do Sul, que pode ser considerado um mito regional. Assim
como ocorre com outros seres misteriosos, poucos se arriscam a falar dele e os
relatos lidos nunca são muito aprofundados. No entanto, esse mito é
compartilhado e acreditado por toda a comunidade da qual faz parte. Como diria
o sociólogo e antropólogo, Erving Goffman[1] em
A representação do eu na vida cotidiana,
“quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus
observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles”. É exatamente
isso o que acontece com o Homem da Capa Preta. Todos sabem que é um personagem e
se torna importante à medida que a comunidade o transforma em algo real que,
por meio de sua postura, traz à tona os valores desta mesma comunidade.
Goffman explica que quando um indivíduo,
ou, no caso, o Homem da Capa Preta apresenta-se diante dos outros, seu
desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os valores oficialmente
reconhecidos pela sociedade e até realmente mais do que o comportamento do indivíduo
como um todo.
Além de reforçar os valores existentes
nesta sociedade, o Homem da Capa Preta faz parte da história da cidade, encaixa-se
na área da Cultura Popular, assunto tratado pelo folclorista Luís da Câmara
Cascudo. Para aqueles que subestimam os mitos e assombrações, eles participam
da essência intelectual humana e não há momento na história do mundo sem sua
inevitável presença. “A elevação dos padrões de vida, o domínio da máquina, a
cidade industrial ou tumultuada em sua grandeza assombrosa são outros tantos
viveiros de superstição, velhas, novas, readaptadas às necessidades modernas e
técnicas”, ressalta o historiador José Odair.
Na tentativa de resgatar um pouco desses
mitos e superstições, foram lidos muitos artigos sobre São Caetano na busca
desses personagens assombrosos, mas pouca informação foi encontrada sobre o
assunto. Por isso, foram ouvidos vários moradores antigos e novos da cidade para
que nos dessem seus relatos, cheios de pormenores, surpresas e curiosidades...
Assombrações no folclore - Se o folclorista Luis da Câmara Cascudo
tivesse vindo para São Caetano mapear seus mitos assombrosos, certamente não
deixaria de fora o Homem da Capa Preta, que entraria no ciclo da angústia
infantil. Embora esse personagem não seja bem uma assombração, já que era
alguém que se vestia ou fantasiava-se de Homem de Capa Preta, podemos
considerá-lo um mito ou uma lenda.
Dentro do ciclo da angústia infantil, onde se encaixaria
esse personagem, encontramos mitos e seres assombrosos, que têm por objetivo
educar crianças e mulheres por meio da sugestão do medo. Sua presença
assustadora impunha uma espécie de toque de recolher aos moradores de São
Caetano nas décadas de 1920 e 1930.
Se correr o bicho
pega, se ficar o bicho come... - Nas décadas de 1920 e 1930, as mulheres
eram as mais atemorizadas. Elas evitavam sair de casa após as 22h, por medo de
encontrar o Homem da Capa Preta, como é conhecida uma figura sem rosto, magra,
que vagava pelas ruas da cidade nas altas horas da noite, vestido com o item que
o caracterizava. As pessoas que encontraram o Homem da Capa Preta juravam que
ele perseguia quem vagava nas ruas de madrugada.
Esse Homem da Capa Preta, afinal, tomou tanta forma e
força que passou a ser usado também como argumento de obediências às mães. Ao
primeiro sinal de rebeldia dos filhos, elas logo avisavam: ‘Olha o Homem da
Capa Preta! Ele pega você lá fora!’. Conclusão: o Homem do Saco Preto, de
outras regiões, passou a ser em São Caetano o Homem da Capa Preta.
Mas não se enganem! Ainda segundo depoimentos, essa figura
nada tinha de sobrenatural, muito pelo contrário. O Homem da Capa Preta era o juiz
de paz João Rela, que adorava mostrar como era respeitado, vestindo uma capa preta
que lhe caía abaixo dos joelhos.
O relato mais contundente dessa figura aparece quando
Elvira e Olívia Buso saíram para fazer compras no açougue dos Lorenzini, na Rua
Rio Branco, quando já escurecia. Atemorizadas pela escuridão da época, elas já
saíram sugestionadas pelo temor da perseguição do Homem da Capa Preta. Ora, foi
dito e feito! Pois, quando já estavam retornando, deram-se conta de que estavam
sendo seguidas por um vulto. Então puseram-se
a correram, muito assustadas.
José de Souza Martins faz uma análise interessante sobre
esse personagem curioso que surge exatamente na época de repressão policial
junto aos operários comunistas. Ademir Médici, no livro Migração e Urbanização: a presença de São Caetano na região do ABC,
dedica um pequeno espaço ao personagem. Ele conta que João Rela levou para o
túmulo a fama de ser o Homem da Capa Preta. Todos sabiam que ele era o
personagem enigmático. No entanto, nunca um inquérito foi aberto e nem uma
prova mais concreta foi apresentada. Mas ficou a versão, assumida por ele
próprio, com muito humor, entendida por amigos e familiares, colocada, vez ou
outra, pela imprensa semanal.
O Homem da Capa Preta simbolizava não só uma lenda, mas o
rigor disciplinar dos costumes da época, quando raras mulheres e crianças se
permitiam sair às ruas tarde da noite. Portanto, não é à toa que eram as
donzelas as mais assustadas com esta figura.
Quem foi ele? - João
Rela nasceu em Itatiba, no interior de São Paulo, em 16 de setembro de 1889,
filho de Giácomo e Antonieta Rela. Veio para o ABC na década de 1910. Foi chefe
da estação ferroviária em Campo Grande e, em 1917, mudou-se para São Caetano,
como chefe da estação local, na ferrovia São Paulo Railway. Além de padaria, ele
teve também seu escritório de despachante. Foi vereador e juiz de paz, ale, de
escrever poemas e contos. Faleceu no dia 3 de junho de 1970, aos 81 anos.
Referências bibliográficas:
CASCUDO, Luis Câmara. Dicionário
do folclore brasileiro. São Paulo: ed. Global, 2002.
________.
Geografia dos mitos brasileiros. São Paulo: ed. Global, 2002.
________.
Locuções tradicionais no Brasil. São Paulo: Global, 2002.
MÉDICI, Ademir: Migração e Urbanização: Presença de São
Caetano do Sul na região do ABC, Editora Hucitec, São Caetano do Sul, 1993.
[1] Nasceu
no Canadá, em 1922, é sociólogo e antropólogo. Atualmente é professor de
sociologia e faz pesquisas para a Universidade da Califórnia, em Berkeley.
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