É com grande satisfação
que compartilho com vocês uma parte das reflexões e discussões feitas em minha pesquisa
de mestrado, defendida em maio do ano passado, junto ao Programa de
Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Tais discussões foram publicadas na 71ª edição da Revista Travessia,
uma publicação tradicional do Centro de Estudos Migratórios.
Este blog, que endossa
o compromisso da Fundação Pró-Memória para com os assuntos relativos ao
patrimônio histórico local, é, sem dúvida, uma conquista não só da instituição,
mas, principalmente, da sociedade, que, por meio dele, poderá colaborar com
textos e usufruir das ideias aqui partilhadas. Que esta importante ferramenta
virtual nos auxilie na divulgação de vestígios e rastros deixados pela
história!
Sociedade Beneficente
Brasil Unido
Entidade de amparo ao migrante nordestino em São
Caetano do Sul
Cristina Toledo de Carvalho*
* Historiadora
da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul e Mestre em História Social pela
PUC/SP
Embora com finalidades distintas das instituídas
na época de sua fundação, em 2 de julho de 1950, a Sociedade
Beneficente Brasil Unido continua em atividade no município de São Caetano do
Sul, no Grande ABC paulista. Se hoje a entidade atua, prioritariamente, como
uma associação recreativa, que coloca à disposição de seus sócios e demais
interessados seu salão de festas para eventos e comemorações de datas
especiais, no passado, suas ações consistiam, basicamente, na promoção de
iniciativas de amparo ao migrante nordestino1.
Surgida no contexto dos intensos processos de
urbanização e industrialização da cidade e região, a Brasil Unido foi fruto das
articulações de um grupo formado, predominantemente, por nordestinos que
usufruíam de uma boa situação socioeconômica em São Caetano. Bem integrados na
sociedade local, tal grupo se firmou como uma referência para os migrantes que
chegavam ao município sem condições
mínimas de inserção social, em virtude, principalmente, de sua baixa ou nenhuma
escolaridade, da falta de documentos e de dinheiro. A existência de todos esses
problemas foi a tônica da criação e da atuação da entidade.
Alguns
dias antes de sua fundação, o grupo que lançou a proposta do amparo aos
nordestinos instalados em território sul-sancaetanense, divulgou, por meio de
um panfleto distribuído na cidade, datado de 27 de junho de 1950, seus
objetivos quanto à prestação de auxílios aos migrantes:
Caro
conterrâneo: Desde que chegamos às plagas da Paulicéa, foi sempre a nossa maior
preocupação patriótica proporcionar a todos os nortistas, que aqui residem ou
venham em busca de trabalho, uma assistência moral e material. Daí nasceu a idéia
de fundarmos um núcleo que, congregando-nos indistintamente, pudesse preencher
as falhas, ainda existentes, que tantas dificuldades causam aos recém-chegados,
principalmente (1950a)2.
A força da presença
nordestina e os problemas de um município recém-criado: cenário propício à atuação
da Brasil Unido
Com a divulgação de tal proposta,
o primeiro passo havia sido dado. A ideia daquele grupo mentor, que era
constituído por 13 nordestinos3, foi a semente que originaria a
Sociedade Beneficente Brasil Unido. Assim, com a institucionalização da
proposta de amparo, seria possível tomar providências mais articuladamente,
visto que os problemas levados ao conhecimento da entidade passariam a ser
tratados não de forma isolada, mas sim a partir de um aparato institucional que
orientaria e agilizaria os procedimentos ou caminhos a serem seguidos na busca
por medidas que pudessem resolvê-los ou, no mínimo, amenizá-los. A proposta de
congregação nordestina encaminhada por aquele grupo, ao se converter na criação
de uma entidade de amparo, evidencia a presença maciça de nordestinos nos
quatro cantos de São Caetano do Sul e também a dimensão de suas necessidades e
demandas.
O episódio do aparecimento de uma entidade como a Brasil Unido, por si
só, já se põe como uma constatação plausível da força nordestina junto ao
montante da população de São Caetano do Sul, naquele início dos anos 1950.
Mesmo não tendo sido possível encontrar índices ou estatísticas que pudessem
informar, de modo preciso, a porcentagem de moradores provenientes do Nordeste
estabelecidos no município, registros que fazem
referência ao assunto apontam que eles
estavam em grande número na cidade. O jornalista e memorialista da região do
Grande ABC, Ademir Medici, assegura que, em certos bairros do município, a
presença nordestina se sobressaiu, como, por exemplo, no Bairro Nova Gerty,
que, na sua concepção,
[...] representa a nova São Caetano e a síntese do processo migratório
experimentado pela região do ABC, a partir da expansão industrial da era da
produção de automóveis, da década de 1950 para cá. O bairro nasce migrante, com
uma multiplicidade de loteamentos urbanos rasgados numa área que, em séculos
passados, abrigou sítios e fazendas e que, a partir do final do século XIX,
recebeu lotes coloniais destinados a imigrantes europeus (1993, p. 455).
O fato de o Bairro Nova Gerty ter concentrado grande número de
nordestinos, assim como o Bairro São José, não significa que as demais regiões
da cidade não tenham apresentado, entre os seus habitantes, grupos oriundos do
Nordeste. Pelo contrário. Em matéria publicada na edição de 18 de dezembro de
1954 do Jornal de São Caetano, o
médico Manoel Gutierrez Durán fez uma análise acerca do perfil dos atendidos
pelo Pronto Socorro Municipal, cujas atividades tinham se iniciado há apenas
três meses, quando da publicação da aludida matéria. As considerações feitas
por ele apontam o quão maciça era a presença nordestina em São Caetano do Sul,
na década de 1950:
Si São Paulo é a ‘cidade
que mais cresce no mundo’, S. Caetano do Sul é o município de maior aumento
vegetativo no Continente. Poucas cidades haverá, talvez, no Universo, que
apresentem um crescimento demográfico de tal forma impressionante; não devido ao
crescimento normal de sua população estável, mas, e principalmente, às levas
imensas, de retirantes que, dia-a-dia, chegam ao ‘Príncipe dos Municípios’. Já
o dissemos uma vez e o reafirmamos aqui: não há nada como um Pronto Socorro
para se medir a intensidade dos movimentos sociais especialmente das camadas
menos favorecidas. Em 3 meses de serviço: atendemos a mais de 1.800 consultas.
Pois bem: cerca de 75% era gente do Nordeste. [...] O Pronto Socorro, algumas
manhãs, nem parece uma repartição de S. Caetano do Sul – Estado de São Paulo –
parece um Pronto Socorro de Garanhuns, Caruarú, Alagoa de Baiqo ou Palmeira dos
Índios (1954, 1ª página).
A transformação de São Caetano numa cidade de
perfil essencialmente industrial reforça a matéria acima, na medida em que
explica a alta porcentagem de nordestinos.
Para acompanhar o crescimento demográfico verificado durante a primeira metade
do decênio de 1950, para o qual a chegada de novas levas de migrantes
nordestinos contribuiu imensamente, os loteamentos antigos da cidade precisaram
sofrer sucessivos retalhamentos até, pelos menos, o final da década de 1960. Em
decorrência disso, houve um aumento da oferta de lotes populares, o que acabou
facilitando a entrada de
migrantes nordestinos em diversas áreas do município. Esse quadro respalda,
assim, a afirmação do baiano Raimundo da Cunha Leite, um dos fundadores e
antigos diretores da Brasil Unido, segundo a qual,
aproximadamente 50% da comunidade de São Caetano do Sul era representada por
seus conterrâneos, “em especial na nascente Vila Gerty”, no início da década de
1950 (2002, p. 53).
Reforçam
ainda as estimativas todas as marcas e sinais deixados por esse povo no tecido
urbano local, como, por exemplo, os resultantes de suas trajetórias e inserção
no próprio mercado de trabalho de São Caetano. Na medida em que as dificuldades
iam surgindo, no processo de instalação dos migrantes em seu novo espaço de
moradia e vivências, a necessidade do amparo tornava-se mais latente. Esse
quadro ficaria ainda mais problemático em face das conjunturas históricas
vigentes na localidade, no início dos anos 1950. Problemas ligados à
infraestrutura urbana e a outros aspectos básicos do viver na cidade, como os
relativos aos segmentos da saúde pública e da assistência social, originariam
um cenário propício à atuação da Sociedade Beneficente Brasil Unido.
Quando houve a sua criação,
em 1950, São Caetano era apenas um recém-município, visto que sua autonomia
política em relação a Santo André havia sido
conquistada, por força do plebiscito de
24 de outubro de 1948, após intensa campanha junto à sociedade local. Por força
dessa situação, a resolução de questões de infraestrutura urbana era o grande
desafio que se impunha ao Poder Executivo local.
De acordo com os resultados do censo realizado em 1950, dos 65
municípios paulistas criados pela Lei nº 233, de 24 de dezembro de 1948, o de
maior densidade demográfica era São Caetano do Sul, com 60.200 habitantes.
Comparando-se com os números apresentados por municípios antigos e já
tradicionais, como Araçatuba, Guaratinguetá, Pinhal, Lorena, Caçapava, dentre
outros, São Caetano colocou-se à frente, com uma vantagem significativa (NUZZI
FILHO, 1951, p. 3).
Com uma alta densidade demográfica, o município não tardaria a
apresentar grande deficit em sua infraestrutura urbana, cujas demandas, muitas
vezes, eram veiculadas em tom de denúncia e cobrança pela imprensa local. Os
problemas mais comuns eram relativos à deficiente distribuição de água e
energia elétrica, ao estado de abandono das vias públicas, dentre as quais
muitas não tinham recebido sequer calçamento, e à precária situação da rede de
esgoto.
No início de 1951, o Jornal de
São Caetano, ao publicar matérias que revelavam esse estado de coisas,
colocava-se na qualidade de porta-voz dos interesses sul-sancaetanenses. Em uma
dessas matérias, em janeiro daquele ano, o articulista Theophilo de Souza
Carvalho teceu críticas à Administração Pública Municipal, apontando os
melhoramentos prioritários para a população. Suas considerações fornecem um
panorama acerca da realidade do município, pouco mais
de dois anos após sua emancipação política em relação a Santo André:
À medida que os dias
correm, as necessidades locais começam a fazer ponto saliente na cidade e é
mister, por isso, que os poderes públicos se movam no sentido de atender aos
justos reclamos da população. [...] Muita gente acha que ainda é cêdo para
termos tudo quanto é necessário à vida regular de um município como o nosso,
onde quase tudo está ainda por fazer. Entretanto, há certos melhoramentos que
estão na pauta da urgência para serem atacados. Isto sem falar na rêde de água
e esgotos, no calçamento da cidade, no aumento da iluminação pública [...] Já
tivemos em certa ocasião oportunidade de escrever alguns comentários a respeito
da falta de defesa para a cidade. [...] defesa, também, contra os possíveis
surtos de epidemias capazes de surgirem de uma hora para outra, em vista do
estado pouco lisonjeiro em que se encontra a higiêne da cidade [...] (1951,
última página).
A questão da higiene pública era, de fato, alarmante em São Caetano. A
matéria Olhai os bairros, senhores,
publicada na Folha do Povo, jornal
cuja circulação era de uma abrangência maior, visto que circulava em Santo
André, São Bernardo e na própria cidade de São Caetano, abordou o assunto,
destacando três bairros do município em que o problema estava mais notório.
Vale lembrar que dois deles, Vila Gerty e Vila São José, apresentavam, entre os
seus moradores, um grande número de nordestinos:
“Os bairros proletários desta cidade poucos benefícios gozam dos
poderes públicos. Para não citarmos todos, citemos Vila São José, Vila Gerti e
Vila Barcelona. Esses bairros são lembrados apenas pelos políticos em vésperas
de eleições, porque no demais, neles tudo são abandono e sujeira.” (TOLEDO,
1953, última página).
As más condições de higiene, aliadas ao
incipiente serviço municipal de limpeza, deixavam os moradores de São Caetano,
sobretudo os de baixa renda, expostos a doenças e a epidemias, o que era
extremamente preocupante, uma vez que a cidade ainda não contava com serviços médico-hospitalares
na época da publicação das duas matérias citadas acima. Somente em 1954 seria
criada a Diretoria de Assistência Social e, com ela, a prestação de serviços médicos
gratuitos aos munícipes.
Diante do que foi exposto, é possível ponderar que a realidade de São
Caetano do Sul era propícia ao associativismo de cunho assistencial, como uma
forma de suprir as lacunas que não tinham sido ainda preenchidas pela
Administração Pública Municipal. Não foi à toa que o início da década de 1950
marcou o surgimento, na cidade, de entidades beneficentes, como a Associação de
Proteção e Assistência à Maternidade e Infância (Apami) e o Rotary Club, além,
é claro, da Brasil Unido.
Os problemas decorrentes da falta de estrutura urbana adquiriam uma
dimensão ainda maior em relação ao migrante nordestino. As condições sob as
quais este chegava à cidade já eram caóticas, e, quando estabelecido, ele
acabava enfrentando inúmeros outros obstáculos, como os relativos às
dificuldades para obtenção de emprego, por conta de sua baixa ou nenhuma
escolaridade. Tal situação, reforçada também pelo fato de, muitas vezes, o
migrante não apresentar os documentos imprescindíveis ao ingresso nas empresas,
desencadeava outros problemas, como um círculo vicioso: desemprego, falta de dinheiro
e comprometimento das condições de vida, como má alimentação e saúde
debilitada. E para agravar, a esta somava-se a ausência de assistência médica
gratuita na cidade, pelo menos até 1954.
Raimundo da Cunha Leite, mais uma vez, fornece um relato precioso. Ao
recordar a situação dos nordestinos recém-chegados a São Caetano do Sul, expõe,
taxativamente: “Faltava-lhes tudo, desde documentos a um lugar para se abrigar,
terminando, via de regra, embaixo dos viadutos” (2002, p. 55). Essa questão, aliada à do quadro
conjuntural do município, torna compreensível o surgimento da Sociedade
Beneficente Brasil Unido. A conjugação de todos esses fatores deu origem a um
cenário propício à sua atuação. Os meios que pautariam suas iniciativas
ganhariam sentido em face das conjunturas históricas, que, assim, funcionariam
como elementos ressonantes da atuação da entidade.
Mutualismo e
filantropia: as duas faces do amparo promovido pela entidade
Diante das muitas carências, as associações beneficentes,
por meio de suas ações, buscavam prestar auxílio, principalmente de natureza
material, à parcela da população que mais se ressentia da falta de
infraestrutura urbana e de serviços na localidade.
Com a Brasil Unido não foi diferente. Sua finalidade precípua consistia
no amparo ao migrante nordestino. E este não precisava ser associado à entidade
para receber auxílios. Os benefícios prestados aos não associados configuravam
práticas filantrópicas, as quais, conforme Ronaldo Pereira de Jesus, “[...] visavam oferecer socorro aos
necessitados sem que da parte destes houvesse contrapartida financeira” (2007,
sem paginação).
Na concepção de Cláudia Maria Ribeiro Viscardi, a relação social decorrente da filantropia “tende a ter um trajeto
verticalizado, no qual o doador estabelece com o receptor uma hierarquia, cujo
tom, à revelia das intenções ou motivações, será o do poder de quem doa sobre
quem recebe. Nessa situação, o receptor se encontrará submetido ao doador,
mesmo que este último não se utilize da relação em seu próprio proveito.”
[2009, p. 293]
Por outro lado, nas práticas mutualistas, observava-se a tal da
contrapartida financeira, garantidora de benefícios resultantes de situações
adversas, como nos casos de desemprego, doença ou morte. As ações dessa
natureza pressupõem “relações de reciprocidade que tendem a ser mais
balanceadas. Todos contribuem e todos recebem a contribuição. Realçam o ethos da obrigação mútua e a
responsabilidade coletiva pelo bem-estar dos outros. Nesse contexto as relações
tendem a ser mais horizontalizadas, e as hierarquias, menos definidas. A
dependência persiste, mas assume um caráter mútuo” (VISCARDI, 2009, p. 293).
Vale notar que, se as iniciativas de cunho filantrópico da Brasil Unido
destinavam-se a migrantes não associados a ela, as de caráter mutualista
estavam voltadas aos membros de seu quadro associativo. Embora a cúpula
dirigente da entidade tenha atribuído duas orientações distintas à promoção do
amparo, tanto a filantropia quanto o mutualismo foram as vias eleitas para o
enfrentamento das conjunturas históricas. Ambas podem, nesse sentido, ser
concebidas como estratégias de sobrevivência e de fortalecimento do grupo que
presidiu os trabalhos iniciais da Brasil Unido. Para Michel de Certeau,
A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças
(os clientes ou os concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os
objetivos e objetos da pesquisa etc.). Como na administração de empresas, toda
racionalização ‘estratégica’ procura em primeiro lugar distinguir de um
‘ambiente’ um ‘próprio’, isto é, o lugar do querer e do poder próprios (1994,
p. 99).
Partindo dessas ponderações, a Sociedade Beneficente Brasil Unido pode
ser concebida como o lugar por meio do qual os
seus dirigentes instituíram e articularam, estrategicamente, ações mutualistas
e filantrópicas, tendo em vista uma exterioridade, representada, no caso, pela
sociedade de São Caetano do Sul.
Apesar das distintas circunstâncias, contextos e
cenários históricos em que apareceram e atuaram, as associações de mútuo
socorro eram pautadas por iniciativas que visavam, primordialmente, à concessão
de amparo e proteção aos seus afiliados. Em vista disso, o associativismo
praticado e fomentado sob a bandeira do mutualismo pode ser interpretado e
compreendido enquanto um sinalizador de adversidades e problemas verificados em
um determinado tempo e espaço. Os obstáculos encontrados por um grupo ou
categoria social, em seu correspondente raio, segmento ou âmbito de relações,
foram a mola propulsora do mutualismo, a sua razão de ser.
O quadro conjuntural adverso de São Caetano do
Sul contribuiu para a instituição de uma orientação mutualista, por parte da
Brasil Unido, na promoção do amparo ao migrante. Embora a referida orientação
tenha sido implantada em um momento considerado pelos estudiosos do assunto
como sendo de recuo e esvaziamento das entidades mutuais, em razão da vigência
de um Estado gerenciador de uma política previdenciária voltada para a
seguridade social, a permanência de práticas mutualistas era de extrema
importância, ainda mais se levadas em conta as constantes denúncias relativas à
inoperância e ineficiência daquela política. Somadas a isso, se encontram as
questões não só de caráter material, mas também as de fundo humano e moral,
dentre elas, as ligadas à disseminação de práticas preconceituosas contra os
nordestinos.
Diante dessa convergência conjuntural, torna-se
compreensível e justificável a instituição, por parte dos primeiros dirigentes
da Brasil Unido, do seguinte objetivo, expresso pelo item 3º do artigo 1º de
seus estatutos: “Auxiliar, moral e materialmente, os seus associados” (1950, p.
1). Entre as motivações dos auxílios morais proporcionados pela entidade,
estava o preconceito sofrido pelos migrantes.
Conforme endossa o baiano Cunha Leite, os
nordestinos instalados na cidade “defrontaram-se com situações constrangedoras.
Falta de moradia e dificuldades na obtenção de emprego foram alguns dos
problemas, não apenas pela baixa qualificação, mas também devido ao preconceito.
Tudo isso levava aquela gente a um verdadeiro estado de miserabilidade” (2000,
p. 68).
Se, por um lado, o amparo moral era deflagrado
pela observância de questões atreladas à existência de preconceito em relação
aos nordestinos, o amparo material fazia-se necessário frente a situações de
doença de sócios da entidade e de morte destes. Nos casos de doença, a Brasil
Unido reservava ao seu associado o direito de receber, semanalmente, uma pensão
e uma visita médica, desde que ele se encontrasse impossibilitado de trabalhar
a juízo de médico da Sociedade. Dentre os registros de práticas mutualistas
lançados no Livro de Beneficências da entidade, entre os anos de 1951 e 1954, a maior parte deles
refere-se a auxílios monetários por doença, conforme o destacado abaixo:
“São Caetano do Sul, 30 de Janeiro de 1952.
Nesta data, a Sociedade Beneficente Brasil Unido,
prestou auxílio ao seu socio João Belarmino de Souza, ordenando e pagando uma
visita medica feita pelo Dr. Oseas Fialho, de acordo com o artigo 9, itens 1 e
2 dos seus Estatutos” (1952, p. 11;
1950b, p. 3-4).
Quanto aos casos de morte de membros de seu
quadro associativo, a Brasil Unido garantia aos seus familiares o recebimento
do auxílio funeral, previsto pelo artigo 17 da primeira versão de seu regimento
estatutário, e também a instituição de pecúlio, nos termos do artigo 18 de tal
regimento. Preceituava ele que só recebia o referido benefício o sócio admitido acima
de 90 dias pela entidade. O valor do pecúlio era fixado de acordo com o número
de sócios existentes. A eles cabia o pagamento de um sinistro na importância de
Cr$ 10,00 (dez cruzeiros) por óbito ocorrido. O prazo estabelecido para tal era
de 30 dias, a contar da data do falecimento do associado, de acordo com o que
dispunha o artigo 19 dos estatutos da Brasil Unido (1950, p. 6-7).
Além dos benefícios destacados acima, os quais
eram tradicionalmente assegurados pelas associações de mútuo socorro, de uma
forma geral, outros foram ainda concedidos pela Brasil Unido, firmando-se como
garantias peculiares ao mutualismo praticado por ela, como, por exemplo, as
concessões de empréstimos financeiros e o encaminhamento de cartas de
referência a empresas da região para sócios que buscavam colocação no mercado de trabalho.
No que concerne à filantropia, a outra face do
amparo proposto pela Sociedade Brasil Unido, cumpre salientar que ela também
ganha sentido em face das conjunturas e condições históricas verificadas no
município de São Caetano do Sul. Como ocorria com as práticas mutualistas, as
relações desencadeadas pelas iniciativas filantrópicas também evidenciavam as
diferenças existentes entre os dirigentes e os migrantes nordestinos
recém-chegados à cidade. Contudo, tais diferenças não eram motivadas e
alimentadas pelo vínculo associativo que unia os sócios da Brasil Unido em
torno de sua cúpula. No caso da filantropia, o amparo não
dependia de uma ligação formal ou oficial
do migrante com a entidade. Portanto, os benefícios destinavam-se a ele
diretamente, sem a mediação das garantias advindas do associativismo, as quais,
para serem usufruídas, exigiam o pagamento de mensalidades por parte dos membros
da entidade. Em outras palavras, os destinatários de suas práticas filantrópicas não
precisavam dispor de nenhuma quantia para o usufruto delas.
Embora a execução da filantropia não estivesse
inserida nas formalidades típicas do associativismo, os mecanismos de poder que
ela compreendia eram tão incisivos quanto os inerentes ao mutualismo, pois
também eles atuavam no sentido do reforço do status e das diferenças entre os que doavam e os que recebiam.
As práticas filantrópicas da Brasil Unido são
indicativas da realidade dos migrantes nordestinos, a qual, em razão de ser
revestida por problemas, dificuldades, carências e precariedades, já os
colocava numa situação de adesão frente às ações dos dirigentes da entidade.
Estes, por força de uma condição socioeconômica favorável, apresentavam-se em
plenas condições não só de comandar os rumos da associação, mas também de gerir
a distribuição da filantropia.
O gerenciamento das práticas filantrópicas fazia
emergir dois mundos bastante distintos: o dos membros da direção da Brasil
Unido, dotado de projeção social e material, e o dos recém-chegados do
Nordeste, desprovidos das condições mínimas necessárias à sua inserção na
sociedade de São Caetano, quer pela ausência de dinheiro e emprego, quer por
motivo de doença e por falta de grau formal de instrução desses migrantes. A
lógica inerente a tais situações tão díspares explica a adesão dos migrantes em
relação às ações filantrópicas provenientes da Brasil Unido, ao mesmo tempo em
que evidencia as vantagens, em termos políticos e sociais, que podiam ser
auferidas pelos integrantes de sua cúpula, enquanto promotores de atos
caritativos e beneficentes.
A dura realidade na qual estava imerso o migrante
nordestino era a polarizadora da face filantrópica da associação. Dessa forma,
suas iniciativas de cunho filantrópico eram norteadas pelos problemas e mazelas
que afetavam, comumente, aquele migrante, em seu cotidiano, em São Caetano. As
ações que se constituíram na marca registrada da filantropia promovida pela
entidade eram traduzidas, predominantemente, pelas concessões de abrigo,
alimentação e auxílios monetários, além das providências tomadas no sentido da
obtenção de documentos, emprego e tratamentos médicos para os seus migrantes
amparados.
Para concretizar, efetivamente, todas essas
ações, a Brasil Unido recorria à sua rede de contatos e relacionamentos, da
qual faziam parte pessoas físicas e jurídicas. Dentre estas últimas, estavam
instituições de referência local, como clubes recreativos e esportivos e
entidades culturais e beneficentes, além das de abrangência nacional, como o
Serviço Social da Indústria (Sesi), patrocinador dos cursos de alfabetização de
adultos e de corte costura oferecidos, gratuitamente, pela Brasil Unido, a
partir de 1951.
Por força de tudo o que a Sociedade Beneficente
Brasil Unido defendeu, incorporou e propagou, ela se torna emblemática da
própria história da presença nordestina no município de São Caetano do Sul.
Neste artigo, foram apresentados somente alguns dos principais aspectos de sua
política de amparo. Outras questões que também marcaram a atuação da entidade
poderão, em outra ocasião, ser discutidos, de modo a possibilitar ao público a
continuidade do acesso aos demais capítulos da história da Sociedade
Beneficente Brasil Unido, ponto de partida para a compreensão das próprias
especificidades que envolveram os processos de deslocamento e instalação de
migrantes nordestinos em solo sul-sancaetanense.
Notas
1 - O presente artigo é parte integrante das
discussões realizadas na dissertação de mestrado Migrantes amparados: a atuação da Sociedade Beneficente Brasil
Unido junto a nordestinos em São Caetano do Sul (1950-1965), defendida junto ao
Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC/SP), no dia 17 de maio de 2012.
2 - Nas
transcrições mantivemos a grafia original.
3 -
Jorge de Souza Muniz Ferreira, Humberto Fernando Forte, Oséas Fialho, Arthur
Estrella de Souza, Francisco Afonso Carvalho, Orlando Souza, Antônio Pereira
Pontes, Aprígio Bernardino de Salles, Pedro Hermenegildo, Bernardino Borges de
Salles, José Bernardino Cunha, Everaldino Alves de Carvalho e Caio Estrella de
Souza.
Referências
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Theophilo de Souza. Em defesa da
cidade. Jornal de São Caetano, São
Caetano do Sul, ano V, nº 165, última página, 20 jan. 1951.
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NUZZI FILHO, José. Estatística demográfica. Jornal de São Caetano, São Caetano do
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VISCARDI, Cláudia Maria Ribeiro. Estratégias populares de
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2009.
Quando vejo uma matéria como esta da Cristina Toledo de Carvalho, os artigos deste Blog, e o trabalho da Fundação Pró-Memória me faz pensar de como há coisas bonitas acontecendo neste país, diferente do que é amplamente divulgado nos meios de comunicação em massa. Parabéns. Willians
ResponderExcluirObrigada Willians!
ResponderExcluirÉ por concordarmos com você e acreditarmos no que divulgamos que nos esforçamos para fazermos tudo da melhor forma possível!
Apareça sempre!