sexta-feira, 24 de maio de 2013

Uma outra realidade

Neste post, a Fundação Pró-Memória apresenta o texto de Eliane Mimesse sobre a realidade das crianças em São Caetano do Sul no século XIX. Esperamos que aproveitem a leitura!!

Lembrando que textos voltados à memória e à arte não só de São Caetano, mas também das demais cidades do Grande ABC e de São Paulo, podem ser enviados para o email jornalismo@fpm.org.br. A Fundação aceitará qualquer tipo de texto - crônica, artigo, reportagem. Não há um número mínimo ou máximo de caracteres.


A dura sobrevivência das crianças no núcleo colonial de São Caetano

Profª Dra. Eliane Mimesse*

*É autora do livro “A Educação e os Imigrantes Italianos: da escola de primeiras letras ao grupo escolar”, da Editora Fundação Pró-Memória.

As crianças que viveram no núcleo colonial de São Caetano do Sul, nas últimas décadas do século XIX, tiveram suas vidas sempre acompanhadas pelos altos índices de mortalidade infantil. Era corriqueira também a contratação das amas de leite (mães que perderam seus filhos e podiam amamentar outras crianças que conviviam com doenças e mortalidade). Não era raro que essas mulheres tivessem perdido um ou mais filhos no nascimento ou antes deles completarem um ano de idade.

Giacomo Garbelotto, um dos antigos colonos de São Caetano, enfatizou essa situação em uma carta para um amigo, datada em 14 de fevereiro de 1889, na qual escreveu: “Sem poder encontrar trabalho e com a perda dos próprios filhos, de sete e oito anos, (...) estou aqui com Giacomo Dal Cin, que tem a filha doente e uma morreu e a mulher está bem e te saúda”.

Nessa época, a causa das mortes era devida às moléstias mais comuns como febre tifóide, malária, febre amarela, varíola e coqueluche. Muitas das crianças morriam e os pais nem sabiam qual era o motivo real, pois não existiam médicos residentes na localidade de São Caetano. Em alguns dos depoimentos analisados, verificou-se que as causas das mortes eram as mais diversas. Temos como exemplo o acontecido com o irmão mais velho de dona Joana Fiorotti Zanini, que morreu depois de levar um coice de um burro na cabeça. Há ainda o caso de dona Irene Marques Biagi que contraiu uma doença, que poderia ser pneumonia, pouco antes da viagem de vinda da família para o Brasil. Nesse mesmo depoimento, ela relata que seu irmão faleceu com sarampo, após terem se instalado no país há uma semana.   

Encontraram-se vários relatos descrevendo que as famílias eram numerosas. Nesse sentido, a inexistência da assistência médica institucionalizada em São Caetano contribuía para o aumento das taxas de mortalidade e de moléstias. Algumas pessoas assumiram as funções de benzedeiros e de parteiras. Essas últimas eram senhoras que ajudavam mulheres durante o nascimento do bebê, e faziam o possível para que a mãe e a criança sobrevivessem.

Em São Caetano, nessa época, não havia nenhuma parteira. As mulheres que tinham condições de saúde para se locomover iam até a casa da parteira que ficava do outro lado do Rio Tamanduateí, em São Paulo. Ou então ela era chamada e trazida de charrete para fazer o parto. Segundo dona Joana Fiorotti Zanini, sua mãe “foi na casa da parteira, que tinha um quarto de propósito para as mulheres conhecidas”.

A morte prematura de filhos recém-nascidos possibilitava que essas mães assumissem um novo tipo de trabalho, considerado relevante para a sociedade da época: o de amas de leite. A prática de amamentar os filhos dos mais abastados existia no Brasil desde os primeiros tempos da colonização portuguesa. As escravas africanas adotavam a função de amas de leite para assim alimentarem os filhos das famílias brancas, e, consequentemente, acabavam prejudicando o aleitamento de seus próprios filhos. Prevaleciam críticas a esta postura feminina da elite, pois as italianas, assim como as escravas africanas, eram consideradas saudáveis a tal ponto de poderem assumir o mesmo posto da mãe no quesito da amamentação. Dona Joana relata que sua “mãe foi ama de leite quando um filho dela morreu [....] Não sei se ele nasceu morto ou se morreu em seguida. Sei que ela tinha muito leite. E, naquele tempo, os ricos não amamentavam os filhos, pois tinham uma ama em casa”.

Como a alta taxa de mortalidade infantil fazia parte do cotidiano, existiam padrões de comportamento aceitos e seguidos por todos. Por conta desse índice, não havia uma preocupação ampla por parte das famílias com o imediato registro oficial dos nascimentos. As crianças eram batizadas na Igreja de São Caetano e quando o pai da família tivesse tempo disponível, se deslocaria até o Tabelionato, localizado na cidade de São Paulo, para registrá-las. Essa ação poderia ocorrer no mês seguinte ou anos depois.

No entanto, os nomes das crianças batizadas e consequentemente registradas no livro de batismos da Igreja de São Caetano nem sempre eram os mesmos nomes pelos quais eram registradas no Tabelionato de Registro Civil. Foi o que ocorreu com o senhor Verino Segundo Ferrari, que somente soube que o seu nome era Verino ao solicitar a certidão de nascimento para se alistar no serviço militar. Nesse caso, o tempo entre o seu nascimento e o registro no órgão oficial foi quase que de imediato, mas o nome da criança registrada no tabelionato era diferente do nome do registro de batismo na igreja. O uso de ‘Segundo’ indicava que existiu outra pessoa na família com esse nome. No caso de Verino, era um tio. Desse modo, ele era o segundo de uma mesma família a adotá-lo.

Esse assunto nos remete também a refletir sobre a inabilidade dos funcionários dos tabelionatos na época. Grande parcela dos equívocos nas grafias com relação a nomes e sobrenomes estrangeiros ocorria pela má compreensão na pronúncia dos imigrantes. Os funcionários de registro civil não sabiam como escrevê-los corretamente, sendo que, muitas vezes, pela dificuldade do idioma, acabavam por registrar denominações que consideravam corretas, ou mesmo com uma ordenação equivocada, escrevendo o sobrenome como se fosse nome e vice-versa.

Mas, para contribuir com essa complexidade dos registros de nascimentos, é necessário explicar que, nessa época, em algumas regiões da Europa, o comum era se escrever primeiro o sobrenome e depois o nome na assinatura de quaisquer documentos.

A importância do sobrenome era expressar a linhagem de uma determinada família, remontar sua origem e vincular o indivíduo a localidades ou regiões. Como exemplo para essa situação temos a listagem com a relação de moradores de São Caetano que assinaram, em 1883, um abaixo-assinado. Algumas das 41 assinaturas estão aqui reproduzidas: “Braido, Giuseppi; Garbeloto, Antonio; Baraldi, Primo Secondo; Visentin, Pietro; Roveri, Filippo; De Nardi, Celeste”.

Pode-se ressaltar ainda que, muitas vezes, as crianças recém-nascidas eram batizadas na igreja e registradas no tabelionato apenas para não morrerem sem os sacramentos.

Vemos que os problemas com as crianças eram diversos: alto índice de mortalidade infantil, inúmeras doenças, além dos problemas com seus nomes e sobrenomes. Mas, apesar de todos esses acontecimentos, muitas delas sobreviveram, tornaram-se adultos e em suas memórias ainda guardam o cotidiano da época. 

4 comentários:

  1. Ótima iniciativa da Fundação Pró-Memória! Parabéns!

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  2. Obrigada pelo incentivo Allan! Continue nos acompanhando!

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  3. Parabéns pela iniciativa. Os textos estão incríveis.
    Através deles lindas histórias sobre a presença italiana em São Paulo são reveladas.

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  4. Obrigada Elaine! Continue nos acompanhando! E, claro, o convite para envio de textos está sempre aberto. Você pode mandá-los pelo email jornalismo@fpm.org.br.

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